A manhã noturna de Samico

Artes

03.12.13

Leitura na praça (1958). Xilogravura, 21 x 23,5 cm (Breno Laprovítera: Acervo do MAMAM/Recife)

Em 1958, Gilvan Samico era ainda um aprendiz. Morava então no Rio de Janeiro, onde frequentava o curso livre de gravura ministrado por Oswaldo Goeldi, na Escola Nacional de Belas Artes. A xilogravura “Leitura na praça”, feita naquele ano, pertence a uma fase menos conhecida da obra gráfica de Samico, mais comumente associado ao imaginário do cordel e à visualidade do Movimento Armorial. “Leitura na praça”, no entanto, é reveladora não apenas da importância de Goeldi na trajetória do artista recifense, como também da qualidade que sua obra gráfica alcançava.

Nessa imagem, um dos aspectos mais marcadamente goeldianos é a atmosfera noturna, tão oposta à luminosidade solar das estampas que Samico faria a partir dos anos 1960. Toda cena está imersa numa espécie de penumbra que contribui para certa indistinção, como se tudo ali corresse o risco de mergulhar de vez na escuridão plena, que subjugaria enfim a luz que com esforço brota da madeira subtraída. E, no entanto, é mesmo noite? A leitura dos jornais, atividade a que os personagens se dedicam, é sabidamente um hábito diurno, para não dizer matutino. Daí a ambiguidade: leem-se as notícias numa manhã noturna? Ou estaríamos diante de um mundo estranho o suficiente a ponto de seus habitantes terem como costume tomar conhecimento apenas à noite das notícias frias do dia que já findou? Não sabemos com certeza se é dia ou noite, se a penumbra que se abate sobre a imagem deve-se ao amanhecer ou ao anoitecer. O clima dúbio é reforçado pelo efeito de neblina produzido pelos veios da madeira, aparentes na impressão. Nessa imagem há várias coisas que ignoramos, a informação dos jornais não sana nosso desconhecimento: quem são esses homens, que notícias lhes trazem os jornais, por que estão ali, serão conhecidos ou estranhos entre si mesmos, para onde irão após a leitura. A ausência de respostas, um mundo que não se oferece em revelação é um dos temas desta gravura.

Os outros dois temas são goeldianos por excelência: a solidão e o isolamento do indivíduo. Trancados em si, esses homens não se tornam companheiros, e nos levam a indagar como toleram partilhar o mesmo banco. Supomos então uma situação de precariedade, uma praça que, de tão carente, faz com que eles, um pouco à força, dividam um banco por falta de haver outros. O vulto negro, ao fundo, instala-se como epítome dessa situação: de costas, a cara enfiada no jornal aberto, indistinto, ausente, ninguém. O outro leitor, no lado direito da imagem, encolhe-se de frio e tem a cabeça pensa, os olhos baixos, não sabemos se dorme ou se lê. Os outros dois sentam-se com os joelhos apontando em direções opostas, para evitar o constrangimento que um contato físico, ainda que fortuito, poderia causar. Atrás deles, os troncos das árvores parecem mimetizar o gesto de afastamento, subindo em direções contrárias (alicerça a composição da cena esse vigoroso X formado pelas pernas dos personagens e pelos troncos das árvores, em movimento disjuntivo).

Gilvan Samico (Amélia Couto)

É, portanto, uma grande ironia que o cenário escolhido seja justamente uma praça, área pública destinada ao encontro, à integração, ao convívio. Igualmente irônica é a atividade destinada aos personagens, a leitura do jornal: um meio de comunicação que aqui atua como solvente de qualquer comunicabilidade entre os leitores. A sensação de que esses homens se encaixam mal no mundo, a impressão de que estão deslocados (outro topos goeldiano) tornam-se mais agudas por meio dessa contradição entre contexto e ação – o primeiro ensejando integração, a segunda optando pela solidão.

Há, no entanto, um fiapo de intersubjetividade, uma centelha que impede que tudo se apague de vez. O olhar de soslaio que o homem à esquerda lança para a página do jornal de seu vizinho cria uma fissura no isolamento dos leitores. Suprima-se isso da imagem e teríamos, de fato, um solipsismo maciço, absoluto. Mas esse pequeno gesto de interesse pelo outro, ainda que oblíquo, parece portar uma possibilidade de redenção, tão frágil quanto preciosa. É quase nada esse olhar para o lado, mas quem sabe o que pode brotar dele? Proferir uma palavra, iniciar uma conversa (ainda que truncada), olhar e ser olhado, escutar, entender, dizer o próprio nome, aprender o nome do outro. Qualquer coisa, enfim, que torne o homem mais humano e a manhã, mais clara.

* Priscila Sacchettin é doutoranda em História da Arte no IFCH/Unicamp.

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