Já se disse que o lugar-comum tem lá seu valor, e por isso fico muito tentada a começar este post com o batidíssimo “é com grande emoção que…”. Não começo, mas chego perto: foi com especial entusiasmo que no início deste 2012 recebi de Heloisa Espada, coordenadora de artes visuais do IMS, a notícia de que a instituição exporia obras de Raphael Domingues e Emygdio de Barros, os dois artistas que a admirável psiquiatra Nise da Silveira descobriu nos ateliês por ela fundados no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro.
Enquanto escrevo, aqui no segundo andar, a exposição Raphael e Emygdio, dois modernos no Engenho de Dentro, que recebe curadoria de Rodrigo Naves e Heloisa Espada, está sendo montada no térreo. Alguns degraus abaixo, na direção do jardim, a Pequena Galeria apresentará Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde, que tem Luiz Carlos Mello como curador.
Conheci Nise da Silveira em 1988, quando comecei a frequentar o Grupo de Estudos C.G.Jung, que ela coordenava sentada à cabeceira de uma mesa retangular rodeada de bancos toscos, onde os gatos Mestre Onça e Cléo circulavam com a gentileza própria de anfitriões.
O despojamento da vida cotidiana da Doutora, como a chamávamos, contrastava com a grandeza de seus gestos e com o requinte de seu método de trabalho que, como se sabe, teve no estudo das imagens produzidas pelos clientes (ela não usava o termo doente, esquizofrênico, ou mesmo paciente), o lastro para suas teses. Ela constatou que os remédios apenas encurtam o período de permanência do doente no hospital, mas não diminuem a frequência de internações. Pregou, com veemência que o objetivo do tratamento psiquiátrico não podia mais continuar sendo a transitória remoção de sintomas.
Ao chefe que lhe mandou apertar o botão para desencadear o eletrochoque no paciente psiquiátrico, olhou o médico com seus “bugalhos enormes”, como chamou Graciliano Ramos aos seus olhos, e disse com firmeza: “Não aperto”.
Em vez do recurso que julgava violento e, na sua opinião, aviltava a dignidade do paciente, conseguiu parcos recursos e fundou, no mesmo Hospital Pedro II, onde trabalhava, ateliês de desenho, pintura e modelagem. Passou a se dedicar ao estudo das imagens como forma não-agressiva de tratamento. Pinçava, na produção dos clientes, elementos que indicassem o processo em evolução no inconsciente. Para espanto seu, viu surgirem, nos ateliês, desenhos, pinturas e esculturas de inegável qualidade artística. Ignorou os que lhe atribuíam interesse em descobrir talentos novos. Como foi difícil fazer entender – e duvidava ter conseguido – que, embora os clientes jamais fossem induzidos a fazer qualquer tipo de desenho, nada os impedia de transformar suas vivências internas, muitas vezes aterradoras, em imagens plasticamente belas.
De acordo com sua teoria, a imagem encerra valor duplo: em primeiro lugar, dá ao pesquisador elementos para compreender, ou pelo menos tentar compreender, os processos internos que se desenvolvem na psique cindida: “É através dessas manifestações expressivas que nos é dado penetrar no mundo interior dos psicóticos”, afirma. Em segundo lugar, representa, para o seu autor, um meio de despotencializar a força destruidora do inconsciente.
No Grupo C. G Jung, que frequentei assiduamente às quartas-feiras, ninguém escapava à agudeza do olhar da Doutora, por isso não tardou que ela me chamasse para ajudá-la na revisão de seus textos ou fazer pequenas traduções. Durante o período em que atuei como sua colaboradora, sem ganhar um centavo mas recebendo uma fortuna, vivi num “cativeiro feliz”, expressão que usou o escritor argentino Alberto Manguel na sua deliciosa A história da leitura, referindo-se ao período em que lia em voz alta para Jorge Luis Borges, cego. Foi com ela que aprendi a conciliar dever e prazer.
No cativeiro de Nise da Silveira, as tréguas consistiam em descontração de minutos para, em seguida, retornarmos naturalmente ao estudo, ao silêncio. Daí a mais uma hora, nova brincadeira, novo intervalo, e o espontâneo retorno ao livro. Era uma disciplina rigorosa e natural a um só tempo. E ela sabia como compensar os sacrifícios: deu-me de presente na páscoa daquele mesmo ano de 1988 o La poétique de l’espace, de Gaston Bachelard, leitura que me abriu um mundo. Daí parti por minha conta para outras descobertas, também com Bachelard: a beleza da imperfeição em O direito de sonhar, no capítulo em que, comentando as observações de Jacques Brosse sobre o pêssego, o autor lembra que a perfeição dessa fruta vem justamente das suas irregularidades: “a bola do pêssego não é jamais uma esfera”.
Assim, entre Bachelard e muitos outros autores, além de Jung, sempre Jung, passamos, eu e a minha querida Doutora, incontáveis tardes em onze anos, de 1988 até a sua morte, em 1999. Está claro que, durante os nossos encontros, eu não deixava de lhe fazer confidências, contar um sonho e prestar atenção ao comentário que ela generosamente fazia. Foi a partir de uma das suas interpretações de um sonho meu que a minha vida mudou. Mas isso é outra história.
Das lembranças tão caras de nossa convivência, relato aqui uma que já contei em livro e que comprova a largueza de espírito dessa mulher extraordinária:
Encerrávamos o trabalho no seu apartamento-biblioteca, no quinto andar de um prédio modesto da rua Marquês de Abrantes, por volta das sete da noite. Em seguida, eu a acompanhava até o quarto andar, o apartamento-residência, e ali me despedia. Muitas vezes, porém, ela insistia em que eu ficasse para o jantar, refeição leve que, de modo geral, constava de uma sopa de arroz integral com legumes.
Certa noite em que aceitei o convite, sentamo-nos à mesa para aguardar que a empregada nos servisse. Mas a moça tinha ciúmes da dona da casa. Eu não escapava à hostilidade da empregada e, apesar disso, lá estava, à espera do jantar. Para a minha anfitriã, vi chegar a sopa quentinha, o cheiro anunciando o sabor. Para mim, uma xícara de café com leite frio e um pãozinho, também frio, ligeiramente amanteigado. O café devia ser o que sobrara do almoço, era turvo e não tinha o aroma tão conhecido. A xícara estava fria.
A Doutora olhou atentamente para a refeição que me tinha sido destinada e, sem levantar o tom de voz, mas muito pausada e serenamente, disse:
– Pode levar a minha sopa. Quero o mesmo que a Elvia.
Falou com tal firmeza e superior dignidade que me deixou impedida de contestar sua ordem, ainda que eu me sentisse no dever de lhe lembrar a recomendação médica para a alimentação adequada aos seus 89 anos de idade, na ocasião. Constrangia-me aquela solidariedade torrencial; não me julgava merecedora. A empregada, por motivos diferentes dos meus, não se sentiu menos intimidada. Limitou-se a retirar o prato e trazer, conforme a ordem, mais um café com leite frio e um pãozinho magro de manteiga.
A contundência da atitude da Doutora me desnorteou. Eu já não sabia se me preocupava com sua saúde, se me envergonhava diante da nobreza de sua renúncia, ou se tudo – imaginava – não passava de uma grande brincadeira. Misto de emoção, estranhamento, perplexidade.
Partilhamos nossa refeição em silêncio. Não trocamos uma palavra. Antes de deixá-la, unimos demoradamente nossas faces, também em silêncio, e, ao me desprender do abraço, percebi que um sorriso levemente irônico se prolongava no canto de seu olho.
Minha dívida para com ela é imensa. Irrestrita é a minha admiração, e não é menor o privilégio de recebê-la no lugar onde trabalho.
Nise da Silveira manteve clara sua proposta ao longo da vida: reconhecer a complexidade das condições psíquicas que se afastam das ditas normais e proceder à investigação desses “diferentes estados do ser” como chamou Antonin Artaud ao processo de desintegração da psique. O método de pesquisa? O da terapêutica ocupacional, da qual ela nunca se afastaria e que lhe permitiu estudos de casos hoje clássicos da psiquiatria, como os de Raphael e Emygdio, cujas obras recebem novas luzes na exposição que se inaugura no dia 14 de julho.
* Na imagem que ilustra o post: a psiquiatra Nise da Silveira e o artista Raphael Domingues.