Quem biografa o biógrafo? Ao comprar uma biografia na livraria, pensamos no alvo, quase nunca no autor. Lemos a biografia de James Joyce porque queremos saber a sobre Joyce, não sobre Richard Ellmann. Há um consenso quase inconsciente de que o biógrafo deve praticamente desaparecer. Sua função é a de pesquisar todos os arquivos disponíveis, entrevistar centenas de pessoas, escolher o relevante na vida do biografado e narrá-lo de forma clara. Estes são, a princípio, os elementos de uma boa biografia, e estão presentes em livros como Derrida, no qual Benoît Peeters rastreia a vida do filósofo francês. Mas o que torna uma biografia excepcional?
Dois motivos me levaram a devorar, neste fim de ano, Robert Oppenheimer: A Life Inside the Center, de Ray Monk, a mais recente biografia sobre o cientista norte-americano (que já recebeu outras quatro biografias). O primeiro é que sou obcecado por física nuclear e pela figura faustiana de Oppenheimer. O segundo é porque Ray Monk não me parece apenas um biógrafo incrível, mas um prosador fora de série. Seu premiado Ludwig Wittgenstein: o dever de um gênio não é apenas uma das melhores biografias já escritas. Se Wittgenstein nunca tivesse existido e o livro fosse uma obra de ficção, estaríamos diante de um dos melhores romances de todos os tempos.
Ray Monk aborda seus temas com a complexidade que mecerem. Ele não pensa que Wittgenstein era apenas um doidinho nervoso que se revelou um péssimo professor primário, ou que Oppenheimer era um poeta frustrado com simpatias pelo regime comunista. A obra dos biografados conta tanto quanto o fracasso pessoal ou sexual de suas vidas, e Monk não busca simplificá-las ou torná-las excessivamente mastigadas. Tenta, a todo custo, explicar o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, e ao entrar nos meandros da fissão e fusão nuclear, gasta páginas e páginas falando do modelo atômico de Rutherford, e das descobertas acerca da eletrodinâmica quântica por Richard Feynman, que foi trabalhar em Los Alamos quando era um rapazote de vinte e quatro anos. Na introdução de Robert Oppenheimer: A Life Inside the Center, Ray Monk enfatiza: é preciso conhecer a obra para entender o artista, é preciso compreender as questões de física e química que atormentavam Oppenheimer para poder entender Oppenheimer. Afinal, o americano fez da ciência a sua grande paixão, e ignorar as questões científicas pensando que isso afastaria o leitor seria fracassar na sua tarefa enquanto biógrafo.
As 800 páginas que compõem o livro, portanto, devem ser áridas e trabalhosas, pode pensar o leitor. E é aí que Ray Monk realmente brilha. Monk trata Oppenheimer como um multifacetado personagem de ficção. Impossível não lembrar de Lorde Jim, no qual o narrador, em sua busca para compreender a figura do marinheiro Jim, afirma, que a busca por entendê-lo era como bater num caixão de metal para tentar descobrir o que está lá dentro. Oppenheimer é notoriamente uma figura impenetrável, por mais entrevistas e palestras que ele tenha dado pós-Hiroshima-Nagasaki. Monk reconhece essa dificuldade, esse distanciamento, e torna isso um dos temas latentes da biografia. As 800 páginas, então, fluem como um best-seller de fantasia, o livro se torna, usando uma expressão digna dos livros mais comerciais, um page-turner. Oppenheimer é o enigma, Ray Monk é o detetive, o leitor é seu cúmplice.
O timing da minha leitura não deixa de ser irônico. O tema das armas nucleares parecia estar numa fase dormente, mas nos últimos dias, a Coreia do Norte chocou o mundo com o anúncio de que testaram sua bomba de hidrogênio. No momento em que escrevo este texto, especialistas ainda debatem se é blefe ou verdade, e jornais correm para preparar infográficos explicando o que é a bomba H. A tecnologia por trás das armas nucleares já é terrivelmente antiga, e a física por trás da fissão e da fusão está acessível a qualquer um. A dificuldade, como se sabe, é a de enriquecer uma quantidade de urânio suficiente para as armas. Robert Oppenheimer, que sempre ficará na história como o pai da bomba atômica, também é conhecido por ser um violento opositor ao desenvolvimento da bomba H e defendeu com tanto vigor o controle de armas nucleares que foi considerado um simpatizante comunista. Ao ler as notícias sobre a Coreia do Norte, o fantasma de Oppenheimer se faz presente. Uma das histórias mais conhecidas do cientista é sua declaração de que, ao ver o primeiro teste nuclear, lembrou-se de um trecho do Bhagavad Gita – trecho este que, Monk me ensinou, trata-se de uma tradução peculiar e pessoal de Oppenheimer, que estudou sânscrito no meio de suas investigações científicas. No trecho do livro sagrado, Vishnu assume a forma de uma criatura com muitos braços e afirma, nesta maneira oppenheimeriana de ver o mundo: “Agora eu me tornei a Morte, o destruidor de mundos”.