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Sérgio, meu caro,
Antes de responder sua deliciosa carta inaugural, devo dizer que estou muito feliz em retomar este nosso contato, interrompido há anos por conta da distância geográfica e dos múltiplos afazeres de cada um de nós. Só preciso controlar meu vício profissional para não transformar esta correspondência numa longa entrevista jornalística.
Pois bem, você me falou de seu tio, goleiro do Fluminense, e isso me fez pensar no destino singular dos goleiros, personagens à parte no universo do futebol. Já se falou muito sobre isso. Único jogador que pode tocar a bola com as mãos, com o objetivo de impedir a consecução do objetivo máximo do jogo (o gol), o goleiro, preso a seu território mais ou menos exíguo, tem uma visão do campo de batalha diferente da de todos os outros atletas. Talvez por isso tantos goleiros tenham se tornado bons técnicos.
Quem sabe essa posição ímpar em campo, e a solidão que ela implica durante boa parte da partida, explique o fato de alguns grandes escritores e pensadores, como Camus e Nabokov, terem sido goleiros na juventude. Deve ter sido isso também – essa visão em “contracampo” – que levou Peter Handke a escrever (e Wim Wenders a filmar) O medo do goleiro diante do pênalti.
O goleiro tem também, comparativamente, algo de feminino, não só pelo uso hábil das mãos, mas pelo fato de ter de “cuidar da casa”, defendendo a inviolabilidade do lar enquanto os homens (os jogadores de linha) saem para a guerra, para a lida da vida. Claro que isso nada tem a ver com a sexualidade dos arqueiros, muitos deles grandes mulherengos, às vezes até demais, como sabemos.
Estou tentando mudar de assunto, mas o tema dos goleiros me atrai como poucos, ainda mais numa semana que começou com um grande frango de um grande goleiro, Rogério Ceni (que ontem tomou outro, contra o Botafogo). Nelson Rodrigues, tricolor como você, dizia que “a poesia do futebol está no frango”. Você sabe disso melhor do que eu, pois de certo modo traduziu essa metafísica do frango naquele conto maravilhoso que eu citei, No último minuto.
Em suma, o goleiro, ao menos potencialmente, tem algo de solitário, de desajustado, de trágico (ou patético). E um goleiro em particular sintetiza tudo isso em sua trajetória. Imagino que seja uma figura de destaque no seu panteão tricolor. Acho que você já adivinhou que estou falando de Castilho, o sujeito que preferiu amputar um pedaço do dedo mindinho a fazer uma cirurgia corretiva que o tiraria das finais de um campeonato. O sujeito que era considerado meio mágico ou santo pelas bolas que desviava “com o olhar”. O sujeito, enfim, que se jogou do alto de um prédio na véspera de embarcar para os Emirados Árabes, onde trabalharia como técnico. Sem explicação, como quase tudo o que fazemos de mais importante na vida.
Entre parênteses: Chico Buarque, outro tricolor célebre, diz que se tornou Fluminense justamente por causa de Castilho.
Recaindo agora um pouco no vício de entrevistador, eu queria que você me falasse um pouco sobre sua relação com o mito Castilho e, eventualmente, sobre o que o levou a torcer pelo Fluminense.
Mas não quero de modo algum concentrar nossa conversa no futebol. Pelo contrário: acabo de ler, com imenso prazer, o seu Livro de Praga, e me encantou, como sempre, a desenvoltura com que você trafega entre memória e ficção e estende pontes (não por acaso, uma ponte é o lugar central das várias narrativas) entre a literatura, a música, as artes visuais etc.
A sua literatura, a meu ver, alcança uma combinação improvável de autoconsciência crítica com espontaneidade, isto é, pensa o mundo e pensa a si própria, revela seus andaimes e tapumes, mas sem perder o encanto da prosa (no sentido mineiro da palavra, de conversa ao pé do ouvido). Uma última pergunta, então: como é que você consegue?
Forte abraço.
Zé Geraldo
Imagem que ilustra este post: foto de Thomaz Farkas