Lygia Fagundes Telles e Erico Verissimo | (Acervo do Instituto Moreira Salles)
Não é comum que uma mocinha de 15 anos seja tão determinada como Lygia Fagundes Telles nessa idade. Desde 1938, quando publicou a coletânea de contos Porão e sobrado, seu primeiro livro, ela já definira o destino: seria escritora.
Foi essa convicção que a fez, dois anos depois, mandar o livrinho a ninguém menos que Erico Verissimo, na época o já conhecido romancista de Olhai os lírios do campo.
“Erico Verissimo, bons dias!”, escrevia ela, cerimoniosa, em setembro de 1941. Era a resposta-agradecimento pela leitura animadora que o romancista gaúcho tinha feito do seu Porão. A partir daí, os dois não deixaram de se corresponder, e as cartas, ao longo do tempo, foram perdendo a formalidade, substituída por um tom extremamente amoroso.
Fossem em Porto Alegre, onde Erico e a mulher, Mafalda, recebiam com a lendária hospitalidade, ou em outra cidade do Brasil, os encontros jamais frustraram as expectativas geradas nas cartas. Ao contrário, a cada vez, consagravam uma amizade que começara tímida, mas firme.
Nas ocasiões em que estiveram juntos, predominavam as conversas divertidas, animadas com bons vinhos e fantasias em voz alta, livres. Ao final de alguns anos, os amigos se permitiam brincadeiras e declarações de amor. Amor fraterno, que incluía Mafalda, grande leitora, além de companheira mítica. Amizade que se fundava, primeiramente, na avaliação inequívoca de Erico, que logo vislumbrou na jovem contista de Porão e sobrado a futura romancista de As meninas. Depois, na sua generosidade “de deus perfeito e lindo”, como diria Lygia no futuro ao amigo.
Desde o início, ela não deixava passar qualquer oportunidade de levar adiante seu projeto de ser escritora. Em 1941, aluna da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e ao ser reprovada em Direito Romano, fez do novo amigo seu confidente: por causa da reprovação, não podia conhecer o Norte do Brasil, como o pai lhe prometera caso passasse nos exames.
Se até aquele setembro de 1941 Erico não tinha visto foto de sua interlocutora epistolar, começou a desconfiar do quanto ela era bonita por causa de outra confidência que a moça lhe fez: ao tentar publicar seu segundo livro, Praia viva, que sairia em 1944 com 10 contos ao invés dos 14 anunciados em carta ao amigo, o editor não queria abrir mão de uma foto da autora na capa. Lygia recusava, mas ele insistia: “E tem, não tem, aparece, não aparece… conclusão: sugeri que botasse o retrato da avó dele” – conta ela a Erico Verissimo na carta reproduzida ao final deste texto.
Havia apenas um ano que os dois tinham começado a se cartear, mas o tempo não contou para Lygia, que, do alto de seus 18 anos, e de igual pra igual, escreveu assim a Erico, na época um homem com exatamente o dobro da idade dela: “Achei Saga um pouco postiço. O senhor já esteve no front“? Cética, referia-se ao romance de 1940, que fecha o ciclo urbano da obra do autor gaúcho.
A intrepidez da moça tinha uma justificativa: ela certamente achava que a personagem desse romance, Vasco Bruno, que deixa Porto Alegre como voluntário da Brigada Internacional para lutar na guerra civil espanhola, não parecia natural no campo de batalha.
Nem de longe ela pensou que pudesse, com a crítica, ofender o amigo. Afinal, com um livro publicado e mais um punhado de contos enfeixados à espera de um editor, já se reconhecia, ela mesma, escritora. Dirigia-se, portanto, a um colega.
Além da crítica, ela recorre a uma astúcia tão simpática que – imagino – Erico Verissimo não terá deixado de sorrir. Tudo em nome da literatura, para ela uma forma de amor. Como quisesse publicar seus novos contos, e sabendo que nenhum editor se interessaria por uma desconhecida, ela propõe ao amigo que os apresente a uma casa editorial dizendo que os textos eram de autoria dele. Depois de lidos e – sonhava ela – aceitos, ele então diria que “estava brincando”, revelava a identidade da autora e dessa forma ganharia ela um editor. Quem sabe daria certo.
A correspondência não indica até onde terá ido o plano de Lygia, mas Praia viva sairia três anos depois, em 1944, pela Martins, de São Paulo.
A busca de um editor não a fazia parar. Assim, em 1943, quando fazia o curso de Direito, Lygia trabalhou como assistente no Departamento Agrícola do Estado de São Paulo. Mas pouco se sentia no setor. Não resistia à tentação de escrever suas histórias nas folhas de papel branco e de boa qualidade a que tinha acesso. O timbre oficial da Secretaria de Agricultura servia mais à criação da funcionária do que ao ofício de assistente. Entre uma carta protocolar e outra, entrava numa personagem e se transportava para uma confeitaria, como se lê numa das cartas que escreve a Erico. Pura ficção com o selo do Departamento Agrícola.
É sabido que Lygia prefere datar o início de sua obra a partir de Ciranda de pedra, romance de 1954, com o qual atingiu a maturidade literária – afirmou Antonio Candido. Por ela, deixaria de fora Praia viva (1944) e O cacto vermelho (1949), livros que Erico Verissimo leu com interesse, assim como leria os seguintes.
Foi o que ele fez em Alexandria, no estado americano da Virginia, de onde escreveu à amiga em 1966, logo depois de ler O jardim selvagem, lançado no ano anterior:
Quem conhece a Lygia de perto, isto é, quem convive com ela, não imagina que esse monstrinho escreva essas coisas… góticas – como se diz por aqui. Porque você é dos melhores papos que conheço, das presenças mais agradáveis e fáceis. Estar com você é muito bom e a gente não se sente com necessidade de usar nenhuma máscara, de escolher palavras ou ficar na defensiva. E como é que uma menina esportiva, extrovertida, produz esse tipo de literatura dramática e densa? Não a estou censurando, ao contrário, estou me admirando. Há contos seus que ficam perseguindo a gente por muito tempo […]
Não foi só ele que se sentiu perseguido pelos contos de Lygia. Carlos Drummond de Andrade expressou a mesma reação com outras palavras. Atribuiu a ela a proeza de captar “a verdade subterrânea das criaturas”, e o resultado disso é a criação de personagens que passam a integrar o mundo do leitor. Por fim, escrevia ele à amiga em carta de janeiro de 1966: “Conto de você fica ressoando na memória, imperativo”.
São desse calibre os contos de Antes do baile verde, de 1970, em que reuniu vinte textos escritos ao longo de vinte anos. Desse livro faz parte o misterioso “Natal na Barca”, publicado pela primeira vez em Histórias do desencontro, em 1958. A coletânea inclui personagens como a obcecada Tatisa, do conto que dá título ao livro. Traduzido para o francês, ganhou o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros, o que levou Lygia a escrever a Erico Verissimo: “A gente fica por demais formidável em outra língua”.
Ao se tornar cinquentenária, em 1973, Lygia vivia um momento especial da vida: naquele ano, arrebatou, com o romance As meninas, todos os prêmios literários de prestígio no país. Antes, já ganhara o coração de Paulo Emílio Salles Gomes, o segundo marido, com quem pôde compartilhar o sucesso daquele ano glorioso. Continuava linda. Ao receber o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, também em 1973, voltava a informar a Erico:
[…] digo sempre que quero ficar uma velha apaziguada, serena, toda voltada para Deus e para as alegrias além do arco-íris e continuo aflita, agitada, tomando porres de trabalho. De ambição. Acho que vai custar um pouco para eu envelhecer, ainda me afobo com os pirulitos e faço charme e faço aquelas caras das artistas dos anos 40 e depois morro de vergonha das caras que fiz.
Não podiam faltar, no arquivo de Lygia, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2004, as fotos, fotos de uma mulher a quem o destino favoreceu com talento e beleza. Neste seu aniversário, o Instituto Moreira Salles pede emprestadas as palavras de Erico Verissimo que, certa vez, festejando a amiga, terminou uma carta assim: “Bandas de música, discursos, cortes de fitas inaugurais. E eu tocarei para você uma pecinha de clarineta, con amore. Isso! Andante con amore.”
***
Abaixo, transcrição da primeira carta de Lygia Fagundes Telles a Erico Verissimo –
São Paulo, 9 de setembro de 1941
Erico Verissimo, bons dias!
Recebi o seu bilhete anunciando-me a viagem. E então, divertiu-se muito? Que homem feliz! Juro que chego a invejá-lo até!
As minhas viagens – coitadinhas! – são todas feitas por aqui mesmo, em redor do Estado de São Paulo. Meu pai tinha me prometido uma viagem para o Norte, caso eu fosse aprovada em Direito Romano; mas Direito Romano me reprovou… Vê? Tudo conspira contra. É melhor não pensar mais em mudar de ambientes, de costumes…
Um dia a gente morre, vai pro céu; e Deus dá então pra gente um par de asas pra conhecer o mundo inteiro! Por enquanto, existe para mim o Estado de São Paulo.
Sei que existe também Porto Alegre, porque o escritor Erico Verissimo faz livros aí. E bonitos livros. Li Saga e continuo gostando mais do distante Música ao longe. Achei Saga um pouco postiço. O senhor já esteve no front?
– Erico Verissimo, vou lhe contar um segredo. Promete não divulgar? Então, ouça: tenho um livro pronto! Sim senhor! Um livro com 14 contos! Dei-o a um editor mas o diabo do homem, antes de ler os originais, cismou que a minha cara devia ser muito mais interessante do que os contos todos e por isso, decidiu botar o meu retrato no livro. Com bons modos, disse-lhe que achava isso muito ridículo. Insistiu. Fiquei zangada; minha cara nada tem a ver com a obra. E tem, não tem, aparece, não aparece… Conclusão: sugeri que botasse o retrato da avó dele. Nesse ponto, resolveu não falar mais nisso. Mas aí eu já estava de mau gênio e exigi a papelada de volta. Agora estou com tudo aqui na gaveta.
– Descansa, Erico Verissimo, não lhe falarei na Editora Globo porque já estou ciente de que ela não edita contos. Caso contrário, há muito já teria mandado, por avião, minhas 120 páginas. Mas o senhor deve conhecer editores, não conhece?
Seria muito trabalho perguntar a esses se não pensaram nunca em publicar livro de gente desconhecida? Se não pensarem, de jeito algum, nesse horror, então o senhor diz que são contos seus, só pra eles se interessarem e pedirem pra ler o original. Depois que tiverem lido, daí o senhor diz que estava brincando, que o original é de uma amiga principiante.
E como pode suceder o fato de devolverem tudo no mesmo instante, pode também suceder o contrário…
– A não ser dentro da Globo, conhece algum editor? Se não conhecer nenhum, não faz mal, a gente arranja por aqui mesmo. Se não arranjar nem por aqui mesmo, também não faz mal… Um dia, a gente morre e Deus, que é muito compreensivo, dá além das asas, uma tipografia. – Quero que o senhor leia esse meu conto que faz parte do livro. É um dos 14… E agora me despeço.
Estou muito contente por ter conversado consigo; é verdade que falei o tempo todo, mas as minhas conversas são cômodas porque não me zango, mesmo quando não há resposta… Muito cordialmente, Lygia Fagundes.