Este é o quarto texto da série Crônicas musicais de Luís Martins, que está sendo publicada às quintas-feiras no Blog do IMS. Integra a antologia Melhores crônicas de Luís Martins, organizada por sua filha Ana Luisa Martins (também autora da introdução que precede a crônica), a ser lançada pela Global Editora.
Em 23 de junho de 1921, quando João do Rio morreu subitamente no banco de um táxi, aos 39 anos, meu pai ainda usava calças curtas. Mesmo assim, ele jamais esqueceria a comoção que tomou conta da cidade naquele dia e o fez se sentir vagamente famoso. O motivo é prosaico: o táxi pertencia ao seu pai, que foi chamado às pressas para solucionar a funesta questão. Alguns anos depois, meu pai também começaria a escrever crônicas. João do Rio, de quem ele leu, releu e pesquisou tudo o que pôde encontrar, tornou-se, desde aquele dia fatídico, sua maior paixão literária. O quanto a morte do maior cronista da belle époque carioca no Studebaker do pai teve a ver com sua trajetória profissional não sei dizer ao certo. Apenas aponto a coincidência. Meu pai achava que selou o seu destino.
No final dos anos 1960, Rubem Braga e Fernando Sabino, que sabiam da paixão literária do amigo, sugeriram-lhe que organizasse uma coletânea de textos de Paulo Barreto (nome verdadeiro de João do Rio). João do Rio, uma antologia saiu em dezembro 1971, pela editora Sabiá (e foi reeditada em 2005, pela José Olympio). No prefácio, o organizador lamenta que a obra de João do Rio fosse “quase ignorada das novas gerações”. Passados 50 anos da morte do autor, explica, seus livros haviam sumido das livrarias. Apenas um fora reeditado (em 1952): A alma encantadora das ruas. Ninguém mais sabia quem era João do Rio.
Muita água rolou desde então. Vários artigos, teses, livros e excelentes antologias de textos do João do Rio foram publicadas. Seu poder de observação e estilo inovador, que esfumaçaram os limites entre jornalismo e literatura, são hoje amplamente conhecidos e valorizados.
Para meu pai, João do Rio seria até o final da vida uma fonte inesgotável de pesquisa e deslumbramento. Uma paixão literária da vida toda, como se pode constatar na crônica abaixo, escrita mais de dez anos após concluir o trabalho para a antologia e publicada originalmente em O Estado de S. Paulo em janeiro de 1972.
Antes do samba
Luís Martins
Quanto mais estudo a obra do carioca Paulo Barreto (João do Rio), mais me convenço que ela é prodigiosa e, no seu gênero, única no Brasil. Este homem, que não chegou a completar 40 anos, viu tudo, conheceu tudo, tudo anotou, registrou e comentou no Rio de Janeiro do seu tempo. Menos o subúrbio. Em compensação, foi o primeiro repórter, talvez, a fixar como assunto jornalístico a favela (que ainda não se chamava favela).
Admiro-me que os historiadores da nossa música popular em geral desprezem, certamente por não conhecê-lo, o rico manancial que se pode colher em seus livros, principalmente em A alma encantadora das ruas.
Ela não fala do samba, que não é do seu tempo, mas registra “letras” que poderiam servir a sambas futuros. Por exemplo:
Zás-trás, zás-trás
Malagueta no cabaz
Com jeito tudo se arranja
Com jeito tudo se faz.
Cinquenta anos depois, um samba contemporâneo insistiria na mesma tecla: Vai! Com jeito vai…
Toda a graça, a despreocupação boêmia, a ironia mansa do malandro carioca repontam nessas pequenas quadras colhidas no cancioneiro popular do começo do século. Como nesta, deliciosa:
O amor da mulher é cachaça
Que se bebe por frio e calor
O amor da mulher é chalaça
É cantiga de mau trovador.
Ou neste simples verso de uma canção que se perdeu:
Perdão, Emília, mas chorar não posso…
O bestialógico do Bolim-bolacho não fica atrás do Bigorrilho, que abafou no Carnaval de 1964. A mulata já era cantada no início do século, ao menos neste lundu que parece saracoteante:
É quitute saboroso
É melhor que vatapá
É néctar delicioso
É bom como não há.
Mais saracoteantes ainda são estes versos, cantados diante de um presépio:
Sussu sussega
Vai dromi teu sono
Tá com medo, diga
Quer dinheiro, tome.
E agora vejam esta maravilha:
Eu vivo triste como sapo na lagoa
Cantando triste, escondido pelas matas.
Para ver se endireito a minha vida
Vou deixar das malditas serenatas.
O meu nome na Gazeta de Notícias
Ainda hoje eu vi, bem declarado:
Ontem à noite foi preso um vagabundo.
Não parece letra de Noel Rosa?