Coetzee e o instinto da censura

Literatura

16.04.13

J. M. Coetzee em Curitiba
(Diego Pisante / divulgação)

John Coetzee é um homem de movimentos mínimos. Parece possuir o poder de esfriar o próprio sangue e permanecer parado onde o deixam, pelo tempo que for preciso. Não se move sem necessidade, talvez por timidez ou recato. É um observador fixo, calado, de olhar intimidante, mas frágil. Nesse sentido, ele não me surpreendeu. Eram impressões que eu já tinha a seu respeito, antes mesmo de encontrá-lo pessoalmente nos bastidores do Teatro Fernanda Montenegro, em Curitiba, na noite desta segunda-feira.

Lembro de tê-lo visto numa rara entrevista concedida à tevê holandesa, na década de 1990, quando ele ainda não era um Nobel e nem havia trocado a África do Sul pela Austrália. No programa, há uma longa cena que mostra o escritor imóvel, na Praia de Dias. Atrás dele, o mar agitado do Cabo da Boa Esperança. À sua frente, um leão-marinho moribundo. Imensas paredes de pedra o cercavam, o ruído das ondas encobria sua voz de timbre elegante. Pouco à vontade, Coetzee tentava discorrer sobre o tema que a produção lhe propunha, uma possível relação entre os conceitos de consolação e beleza. Consultou breves anotações, pediu mais tempo para refletir sobre algo. E a certa altura, incomodado, perguntou ao entrevistador: “Você quer que eu me mova?”. A resposta foi não.

Enquanto eu o aguardava, no camarim do teatro, me contaram que Coetzee estava cansado. Nenhuma surpresa: ele vinha de um evento em Bogotá e outro na China, partiria no dia seguinte para Porto Alegre e, em seguida, Buenos Aires. Assim que chegou a Curitiba, almoçou frugalmente e, relutante, soube que, se quisesse, poderia passear à tarde pela cidade ? não pedalando, como é seu hábito, mas de carro.

Tinha duas opções: Jardim Botânico ou Parque Tanguá. Escolheu o último, uma pedreira desativada cujo maior atrativo é uma cachoeira artificial, de mais ou menos 50 metros, sobre a qual se erigiu um mirante. Ao chegar lá, no entanto, a cascata estava desligada. O visitante, tão quieto quanto as águas do parque, apenas correu a vista sobre o Pilarzinho, bairro de Paulo Leminski, e voltou para o seu hotel, na Praça do Japão.

Formalidade cortante

Quando entrou no camarim, Coetzee trazia consigo uma formalidade cortante, à qual mesmo curitibanos como eu e Cristovão Tezza, que também o esperava, não estamos habituados. De terno e gravata, entre a gentileza e a desconfiança, sorriu para a meia dúzia de pessoas que o recebeu à porta, apertou as mãos que viu estendidas para ele e, convenções cumpridas, plantou-se diante do espelho e das bandejas de frutas e salgadinhos. Aceitou apenas um gole d’água. E dali não mais sairia, não daria nem um passo sem que o rebocassem para outro lugar.

Tezza, que em 2010, durante sua participação no Festival de Artes de Adelaide, jantou na casa de Coetzee juntamente com Geoff Dyer e Marina Lewycka, estava lá para combinar os detalhes do almoço que ofereceria ao Nobel, no dia seguinte, em seu apartamento no centro de Curitiba. Cardápio vegetariano, naturalmente ? preparado in loco por um chef profissional, genro de Tezza ?, e uma lista restrita de convidados: além da família do autor de O filho eterno, apenas seu vizinho Caetano Waldrigues Galindo, tradutor do Ulysses.

O som da sua voz

No palco, o evento ? uma parceria entre os projetos Conversa entre Amigos, já tradicional no Paraná, e Litercultura, uma novidade em fase de lançamento ? já tinha começado. A professora de filosofia da UFRGS Kathrin Rosenfield, austríaca há muito radicada no Brasil e especialista na obra coetziana, conversava com o deputado federal Marcelo Almeida (PMDB), criador e anfitrião do Conversa entre Amigos. O auditório, lotado, e que mantinha uma expectativa solene estranhamente próxima a de um show de João Gilberto, começava a relaxar. Mas não muito.

No camarim, Coetzee ouvia Tezza falar sobre Curitiba e algumas de suas questões culturais e raciais mais peculiares, expressas pelo crítico Wilson Martins em seu livro Um Brasil diferente. O sul-africano parecia interessado, mas raramente falava algo, e quase que somente platitudes de concordância, as mãos cruzadas em frente aos quadris.

Guardava fôlego para a palestra. Sua maior apreensão era com a tradução de sua fala. Não porque temesse ser mal interpretado, mas porque gostaria que o público ouvisse o som de sua voz simultaneamente ao da tradutora. Para ele, a maneira sóbria e pausada com que expõe suas ideias parece ser tão importante quanto as poucas coisas que diz.

“Indesejáveis”

Puxei uma cadeira para a coxia e fiquei ali, à sombra das cortinas, os fones ligados, bloco no colo. Coetzee começou cumprimentando o público, agradecendo o convite, chamando Curitiba de “cidade interessante”. Novas formalidades, sim, mas simpáticas, bem-recebidas pela plateia muda, tão estática quanto o palestrante.

Acompanhei daquele esconderijo toda a conferência. Coetzee de costas para mim, texto na mão, 55 minutos discorrendo sobre ficção e censura sem tirar os pés do chão, sem movê-los um centímetro, sem se perder na leitura, sem improvisar ou acelerar o andamento das frases, sem desviar a atenção para o ambiente um momento sequer. Num sofá cenográfico ao meu lado, na escuridão, a silhueta de Cristovão Tezza, pernas cruzadas, atento.

Coetzee contou que, ao se mudar para a Austrália, em 2002, sua primeira surpresa foi descobrir que o governo federal subsidiava artistas. Afinal, na África do Sul das décadas de 1970 e 1980, quando o autor começou a publicar, o único órgão estatal a se debruçar sobre a produção artística nacional era o infame Comitê Anônimo dos Censores. O máximo que um escritor poderia desejar era ser ignorado pelo poder. Ser pago por ele era algo impensável.

A partir dessa e de outras colocações acerca da política sul-africana na época do apartheid, Coetzee passou a relatar de que forma três de seus livros foram avaliados pelos examinadores de então: No coração desta terra (1976), À espera dos bárbaros (1980) e Vida e época de Michael K (1983). O objetivo do sistema era evitar que a “nação branca”, isolada do mundo, fosse contaminada por eventuais notícias do declínio do Ocidente e, de quebra, afastar quaisquer ameaças comunistas à segurança do Estado. A censura, portanto, tinha dois braços, um moral e outro político.

Os três livros foram liberados. Mas, após a abertura dos arquivos do regime, nos anos 1990, foi oferecida a Coetzee a oportunidade de ler os relatórios dos censores sobre suas obras da juventude. Surpreendeu-se com o que descobriu: apesar de seus livros possuírem elementos considerados “indesejáveis”, tais como o “sexo entre as cores”, cenas de estupro e assassinato e até perigosas críticas à prática da tortura, eles também seriam “trabalhos magistrais”, de “grande envergadura”, “difíceis e obscuros”, isentos de qualquer apelo popular e destinados somente ao consumo de intelectuais. Ou seja, nada com que se preocupar: as massas estavam protegidas.

Mais espantosa foi a revelação da identidade desses censores. Eles não eram, conforme suspeitava, funcionários burocratas e insignificantes, de carimbo e tesoura em punho. Eram conhecidos seus, alguns da mesma universidade onde ele trabalhava, na Cidade do Cabo, acadêmicos cordiais com quem chegara a tomar chá em agradáveis reuniões sociais. Para Coetzee, essas pessoas, ao aceitarem aquele cargo vergonhoso, se viam como defensores da alta literatura. Decerto imaginavam que seu padroeiro poderia muito bem ser o czar Nicolau I, que censurava por conta própria a obra de Aleksandr Púchkin a fim de poupá-la da ignorância do baixo funcionalismo.

No seu caso, Coetzee acredita que só foi salvo do corte por ser branco, africâner, e pertencer tanto à classe média quanto à intelligentsia sul-africana. Além do mais não seria um subversivo, e sim “um respeitável cidadão da extramundana República das Letras”.

A intensidade da luz

Para finalizar, Coetzee partiu para uma provocação. Disse que, hoje, pode nos parecer engraçado ouvir que o governo de um grande país montou um aparato dispendioso para impedir que seu povo visse corpos humanos despidos ou lesse Karl Marx. Ganhamos alguma liberdade, afirmou. Mas será que as pessoas dos anos 1950, perguntou à plateia, teriam acreditado se contássemos a elas que, no século XXI, seria um crime carregar fotos de crianças nuas ou mesmo fazer críticas ao Islã? “Não existe progresso quando se trata de censura”, concluiu. “O instinto da censura está dentro de nós. Quanto mais as coisas mudam, mais se mantêm iguais.”

Dito isso, escutou os aplausos com paciência, sentou-se a uma mesa no palco, queixou-se da intensidade da luz sobre ele e autografou, em silêncio, centenas de livros.

* Luís Henrique Pellanda é escritor e jornalista, autor dos livros “O macaco ornamental” e “Nós passaremos em branco”.

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