A exposição Raphael e Emygdio: dois modernos no Engenho de Dentro está em cartaz até 7 de julho no Instituto Moreira Salles de São Paulo. As fotografias que ilustram este post são de Diego Ferreira.
O crítico de joelhos diante de um quadro: a cena inusitada despertou a curiosidade dos visitantes da galeria do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Amarelo, azul, verde, a paleta cromática agressiva da tela guardava semelhança com os expressionistas alemães. No entanto, o pintor nunca vira nenhuma obra expressionista. Emygdio de Barros estava internado havia 23 anos em instituições psiquiátricas, quando começou a frequentar o ateliê de ocupação terapêutica do então Centro Psiquiátrico Nacional (CPN), no Engenho de Dentro. Nunca tinha pintado antes.
A exposição, realizada apenas um ano após a inauguração do ateliê, em 1947, reunia 245 pinturas de internos do CPN. Os pintores foram descobertos pelo artista plástico Almir Mavignier nas enfermarias do Centro. Eram internos que costumavam desenhar nas paredes – e até no ar, como Raphael Domingues.
Raphael fazia traços no ar, chegando a esbarrar o bico de pena nas roupas de quem estivesse perto. Mas quando encontrava a folha de papel se perdia em desenhos suaves, que podiam partir de uma única linha. Observando esses desenhos, a doutora Nise da Silveira, criadora do ateliê, identificou semelhanças com o trabalho da artista plástica Martha Pires, que acabou acompanhando o trabalho de Raphael por muitos anos. Sem, no entanto, influenciá-lo, já que no ateliê se praticava unicamente a arte livre, ou seja: a autoexpressão sem interferências. Ali não se aprendia técnica alguma; a pintura era um processo natural.
Segundo o psicólogo Eduardo Pamplona, que trabalha atualmente no ateliê, o processo criativo do psicótico, por estar livre da censura egoica, reflete os sentimentos mais íntimos e o próprio inconsciente coletivo. E talvez esteja no inconsciente coletivo a resposta para a aparição espontânea do expressionismo no trabalho de Emygdio.
O crítico de joelhos
As telas eram tão expressivas que o crítico de arte Mario Pedrosa, personagem inicial deste texto, literalmente caiu de joelhos. E entrou num embate contra Quirino Campofiorito, que questionava o valor artístico do trabalho dos internos afirmando que aquela pintura “constituía um simples meio de dar ao infeliz um extravasamento de insatisfações sensoriais que atormentam a mentalidade afetada em seu equilíbrio”. Tratava-se de uma interpretação rasteira da proposta terapêutica da doutora Nise de despotencializar as energias psíquicas negativas através da simbolização das mesmas.
O processo de simbolização nada mais é do que o próprio processo criativo. Obviamente, o objetivo deste processo não era, em primeira instância, produzir obras de arte – e talvez por isso a arte aparecesse de forma tão contundente e natural entre o trabalho dos internos. Mas Campofiorito segue criticando a falta de técnica dos clientes (como a doutora Nise preferia chamar os pacientes, já que o termo “paciente” indica uma conduta passiva). É então que a teoria de Arte Bruta de Jean Dubuffet surge como contraponto, reconhecendo como arte o trabalho de pessoas com pouca ou nenhuma instrução.
Quem cria o louco?
É comum (e confortável) enxergar o louco como uma figura distante, fruto de conflitos totalmente estranhos ao nosso entendimento. No entanto, segundo o conhecimento médico atual, qualquer pessoa que passe por um período de estresse intenso pode entrar em surto psicótico. E os motivos desencadeadores dessas crises estão muito próximos da nossa realidade, como ressaltou a arteterapeuta do ateliê, Glória Thereza Chan, ao contar a história de Emygdio:
“Emygdio era muito inteligente, foi sempre o primeiro da classe. Fez o curso técnico de torneiro mecânico e ingressou no Arsenal da Marinha. Destacou-se pela qualidade do seu trabalho e foi designado para fazer um curso de aperfeiçoamento na França, onde permaneceu durante dois anos. Quando voltou ao Brasil, encontrou a mulher que ele amava casada com o seu irmão. Emygdio abandonou o emprego e passou a andar pelas ruas, até ser internado no velho Hospital da Praia Vermelha”.
E de Raphael:
“Raphael era um menino sensível, tímido e retraído. Aos 13 anos, ingressou no Liceu Literário Português, onde estudou Desenho Acadêmico. Trabalhou como desenhista em escritórios particulares, chegando a ganhar um prêmio num concurso da Standard Oil Company. Quando o pai abandonou a família, Raphael, o mais velho dos quatro irmãos, assumiu o sustento da casa. Os primeiros sintomas da doença se manifestaram logo depois e ele também foi internado no Hospital da Praia Vermelha”.
Imagens do Inconsciente
Em 1952 foi criado, também no Centro Psiquiátrico Nacional, o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), que não só abrigaria o acervo de obras de arte produzidas nos ateliês como também promoveria exposições das mesmas. A proposta era criar um museu vivo.
A importância do trabalho de pesquisa realizado no museu foi reconhecida por Carl Gustav Jung, que convidou a doutora Nise para apresentar as obras de seus clientes no II Congresso Internacional de Psiquiatria realizado em 1957, em Zurique. O convite surgiu depois que Jung recebeu uma carta de Nise relatando o recorrente aparecimento de mandalas nas pinturas e desenhos dos internos. Para Jung, as mandalas representavam o potencial autocurativo da psique, em oposição ao caos interno daqueles indivíduos.
Eduardo Pamplona aponta o aparecimento de formas geométricas nas pinturas e afirma que elas também são reflexo da necessidade de opor figuras rígidas e bem delineadas à desorganização psíquica. E ressalta que a linguagem plástica e poética consegue aproximar o louco dos ditos normais, já que a poesia não precisa ser entendida, mas sentida. Desta forma, o museu é também um importante espaço de ressocialização.
A proposta da doutora Nise de manter um museu vivo prossegue: o acervo cresce todos os dias com a incorporação das obras produzidas no ateliê de ocupação terapêutica. São mais de 360 mil esculturas, pinturas, desenhos e obras literárias.
Palavra sem fim
A expressão artística livre pode ser praticada em diversos suportes. No entanto, as artes visuais parecem estar mais presentes que a literatura – ainda pouco citada como forma de dar contorno à angústia psicótica. Talvez por uma deficiência da própria linguagem, que, pelo caráter de simulacro da realidade neurótica, pareça incapaz de traduzir o universo psicótico.
É neste ponto que o “defeito” da escrita do psicótico nos convida a descobrir novas relações entre significante e significado. Admitir esse segundo olhar para o discurso da loucura – seja ele escrito ou falado – é corrigir a tendência de silenciar toda e qualquer voz dissonante. É admitir o surgimento de outra linguagem sem, no entanto, considerá-la inferior. É perceber a palavra em seu estado bruto, ou seja: forma e musicalidade.
Glória Thereza Chan conta que no ateliê são utilizadas técnicas dadaístas, como por exemplo o saco dadaísta, para produzir poesias. Apesar de os clientes não se saberem escritores, o fato é que, através deste processo, atribuem novos e inquietantes significados às palavras – e produzem literatura.
As obras literárias do museu são catalogadas e guardadas em pastas. Descansam na borda de silêncio que separa texto de leitor. Mas, num momento em que revisitamos exaustivamente os mesmos estilos literários em meio a um constante esvaziamento da palavra, não seria interessante redescobrir este acervo? E redescobrir que a palavra (psicótica ou neurótica) não tem fim.
Mário Pedrosa faz falta.
* Daniela Lima é jornalista e escritora. Lançou em 2012 o livro Anatomia, pela editora Multifoco. Atualmente escreve a biografia de Maura Lopes Cançado, com a assistência de pesquisa de Natália Pinheiro.