Eu aceito, eu aceito!

Miscelânea

04.09.14

E de repente surgiu a demanda pelo casamento gay. De início, muitos gays progressistas (eu inclusive) rejeitaram essa iniciativa, pois parecia apenas outro exemplo de assimilação. Mas começamos a ver que era uma causa pela qual valia a pena lutar. Se os preconceituosos se opõem ao casamento gay com tanta veemência, é porque o casamento é uma instituição decisiva para eles; os gays nunca serão totalmente aceitos até poderem se casar e adotar, como qualquer outra pessoa. Também parecia ser uma frivolidade ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo por qualquer motivo; afinal, se fosse permitido, isso teria um impacto direto e positivo em inúmeras famílias comuns. Como disseram os advogados David Boies e Theodore Olson em Redeeming the Dream [Resgatando o sonho]:

“Dissemos desde o início que pretendíamos provar três coisas: primeiro, que o casamento era um direito fundamental; segundo, que negar o direito ao casamento a cidadãos gays e lésbicas os prejudicava seriamente, assim como os filhos que estavam criando; em terceiro lugar, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não causava danos ao casamento heterossexual”.

 

Grupo de defensores do casamento igualitário dividem espaço com opositores em São Francisco. Foto do usuário “rockbandit” no Flickr.

Essa longa batalha culminou em 2013, que pode muito bem ser rotulado como o Ano do Gay. Um estado após o outro dos EUA legalizou o casamento gay, apesar da forte oposição da direita religiosa. A Lei de Defesa do Casamento (The Defense of Marriage Act, conhecido como Doma) foi derrubada pela Suprema Corte; depois disso, casais de pessoas do mesmo sexo legalmente casadas, morando onde fosse, podiam fazer declarações conjuntas de imposto de renda, até mesmo retroativamente. A Don’t Ask Don’t Tell (Não pergunte, não declare), política antigay das forças armadas, foi revogada em 2011. Os Escoteiros cederam: garotos gays agora podiam se tornar escoteiros (embora adultos abertamente gays não possam se tornar líderes escoteiros). Na França (apesar de uma oposição surpreendentemente ativa), o casamento igualitário foi legalizado, assim como em vários países da América do Sul. As promessas da terapia de conversão, que afirmavam ser possível converter um gay em hétero, foram renunciadas e até proibidas em alguns locais.

Os gays nunca tiveram tanta visibilidade – na política, na televisão, no Facebook. Não era mais legal discriminar lésbicas ou gays. Os comediantes pediram desculpas em público por usar a palavra “veado” em um momento de raiva. E os gays eram tão predominantes que se tornaram mais seletivos quanto aos políticos; Christine Quinn, a candidata a prefeita de Nova York declaradamente lésbica, perdeu o voto gay para Bill de Blasio (cuja mulher, negra, anunciou orgulhosamente que havia sido lésbica antes do casamento).

A Aids angariou maior simpatia para os gays, que deixaram de parecer aqueles moleques privilegiados que nos anos 1970 a maioria da população olhava com desprezo. A doença havia tirado do armário indiscriminadamente gays de todas as classes sociais e raças; se na década de 1970 de modo geral apenas jovens homens brancos tinham tido coragem de se assumir publicamente, os gays pobres e os gays ricos e os gays velhos e os gays do gueto tornavam-se então visíveis – e eles sofriam de uma doença fatal terrível. Em 1996, terapias retrovirais triplas começaram a ser utilizadas e a taxa de mortalidade por Aids despencou. Enquanto nos anos 1980 os hospitais transbordavam de pacientes terminais e os nomes de mortos por Aids lotavam as páginas dos obituários, agora parece que poucas pessoas estão morrendo da doença – pelo menos no primeiro mundo, onde os medicamentos que salvam a vida são acessíveis. No último mês de maio, a ala dedicada a HIV/Aids em Vancouver, no Canadá, fechou devido à falta de pacientes. No terceiro mundo, porém, a taxa de mortalidade – de homens e mulheres, heterossexuais ou gays – é acachapante. Em 2012, mais de 35 milhões de pessoas viviam com HIV/Aids, 69% delas na África Subsaariana, e a maioria delas heterossexuais.

Se a legislação nos EUA tendia a um favorecimento dos gays, especialmente dos casais gays, na Rússia, no mundo muçulmano e na África negra a oposição aos gays estava aumentando. Em todos os casos, o preconceito podia ser atribuído à religião, fosse ela Russa Ortodoxa, lei islâmica ou Cristianismo Africano. Parlamentares americanos, religiosos e de direita, alimentavam o frenesi religioso na África (Uganda chegou a cogitar uma lei para matar os gays); eles devem ter reconhecido que seu cruel programa tinha sido derrubado nos Estados Unidos e que os conservadores religiosos africanos forneciam a última chance para concretizar seus sonhos fascistas. Eu uso a palavra “fascista” conscientemente, pois os nazistas sempre ficavam se gabando das virtudes da virilidade e dos perigos da “decadência” homossexual, e mandaram os gays para os campos de concentração.

Por que o mainstream dos Estados Unidos aceitou a igualdade de direitos no casamento? Os líderes homossexuais criaram uma argumentação convincente de que as famílias gays eram iguais às heterossexuais e deveriam ter os mesmos direitos. O espírito americano do fair play tinha sido invocado. Os gays levaram muitas pessoas a acreditar que eles constituíam uma minoria – como os judeus ou os afro-americanos ou os asiáticos. Para falar a verdade, tratava-se de uma estranha minoria, a qual não se pertencia pela descendência dos pais e que era formada principalmente por membros que podiam “evitar” se tornar parte dela. Era mais uma identidade do que uma minoria, uma identidade que alguém podia assumir aos seis anos, aos 60 ou nunca.

A aceitação dos gays dependia em larga medida da ideia de que eles não escolhiam a sua identidade sexual, mas que ela era de certa forma geneticamente determinada. A maioria dos que se declaravam gays nos anos 1970 rejeitavam o argumento genético; não queríamos entender nossa orientação como glandular, mas (o quê? Escolhida? Também não gostávamos dessa opção) não podíamos determinar em qual momento fizemos a “escolha” de ser gay. Decidimos então que todas as teorias sobre a origem da homossexualidade eram preconceituosas. Ninguém teorizava sobre como as crianças se tornavam heterossexuais, argumentávamos, o que parecia igualmente misterioso. Dissemos que se alguém entrasse numa discussão sobre o que causava a homossexualidade, a natureza ou a cultura, os gays sempre perderiam.

Por mais defensável que nos parecesse tal posição na época, o argumento genético de fato convenceu os Estados Unidos médio a nos aceitar. Se os pobres coitados não podiam evitar o fato de serem frutinhas, por que deveríamos persegui-los? Da mesma forma, seria possível perseguir alguém pela cor de sua pele.

Ao mesmo tempo, os limites de gênero se tornaram mais e mais porosos. Travestis e transexuais se tornaram mais comuns; na Alemanha, uma nova lei reconhece que os bebês, ao nascerem, podem ser declarados em um terceiro gênero, intermediário. Se por um lado a nossa orientação sexual parecia ser determinada, o nosso gênero dava a impressão de ser totalmente fluido, arbitrário e poroso.

Lembro bem que nos anos 1960 tive um namorado que gostava de andar de mãos dadas em público, o que me deixava muito desconfortável até mesmo no Greenwich Village. Hoje ninguém mais dá bola.

É claro que houve uma longa história de batalhas jurídicas gays e lésbicas, bem resumidas na Law and the Gay Rights Story [A história da lei e dos direitos homossexuais], livro que lida com muitos problemas além do direito ao casamento: o ambiente de trabalho, a liberdade para servir nas forças armadas, não sofrer violência, a garantia de que gays declarados possam dar aulas em escolas públicas. Entre 2004 e 2013, o número de americanos que ficariam irritados se tivessem um filho gay caiu de 60 para 40 por cento – uma transformação notável em menos de uma década. A maior visibilidade de celebridades gays (como Ellen Degeneres) e a alta qualidade de filmes (como o vencedor do Oscar Brokeback Mountain), programas de TV (como Will and Grace, Modern Family e Glee) e peças (como Angels in America e The Normal Heart) com esta temática com certeza contribuíram para a mudança de opinião.

A luta pelo casamento gay ficou mais intensa após a aprovação na Califórnia, em plebiscito, da Proposition 8, uma emenda confusa que declarava válidos no estado apenas os casamentos entre homens e mulheres. O caso chamou a atenção de Theodore Olson, o advogado conservador que tinha ganhado na Suprema Corte a causa Bush vs. Gore. Ele considerava a questão do casamento gay um assunto que dizia respeito à proteção igualitária diante da lei e reconhecia que essa era a luta por direitos civis de nossa época. Como Jo Becker conta em Forcing the Spring, ele se declarou honrado em representar lésbicas e gays e se dispôs a assumir o caso cobrando honorários de US$ 2,9 milhões, preço com desconto e sem incluir as custas, embora gerando uma considerável repercussão negativa entre seus amigos conservadores com argumentos de fundo religioso ou constitucional.

Quem estava por trás da disputa judicial era Chad Griffin, um consultor político gay que tinha se tornado o diretor da organização de direitos civis homossexuais Human Rights Campaign, e sua amiga e sócia, Kristina Schake. Eles se uniram a dois de seus clientes, o cineasta Rob Reiner (de Harry e Sally Feitos um para o outro) e sua mulher, Michele, tradicionais militantes em defesa dos direitos civis. O time ficou completo com a entrada de David Boies, que defendeu Gore na Suprema Corte. O “estranho casal” formado por Boies e Olson chamou muito a atenção da imprensa.

A decisão de entrar na justiça contra a Prop 8 não foi bem vista pela liderança gay mais tradicional, que acreditavam que uma decisão adversa poderia atrasar a luta pelos direitos homossexuais em décadas. O slogan deles era “Faça mudanças, não processos”, e a sua agenda política era a de lutar pela aprovação de leis do casamento igualitário de estado a estado. Sobre a ação judicial contra a Prop 8, Jennifer Pizer, representante do grupo de defesa dos direitos gays Lambda Legal, disse ao New York Times: “Achamos que é arriscado e prematuro”. Quando se deram conta de que a dupla Boies-Olson iria adiante de qualquer forma, muitos grupos de direitos homossexuais quiseram se juntar, mas os advogados sempre recusaram, dizendo que não queriam que a causa fosse “balcanizada”. Eles conheciam muito bem as ferozes brigas internas entre grupos homossexuais. Ao final, o juiz só permitiu que a cidade de São Francisco registrasse uma audiência pública.

O relator do caso no Distrito do Norte da Califórnia foi Vaughn R. Walker, um juiz de 65 anos indicado por Reagan e cuja nomeação havia sido violentamente criticada pela comunidade homossexual. Não sem surpresa, Walker acabou se revelando gay, o que levou os adversários do casamento igualitário a defender sua impugnação, embora a maioria dos especialistas defendessem que a orientação sexual do juiz era irrelevante. (Um juiz afro-americano estaria impedido de julgar um caso envolvendo preconceito racial? Um juiz que foi estuprado não deveria poder julgar um caso de violência sexual?)

Walker queria que os trabalhos fossem televisionados, uma vez que poderiam ser elucidativos para o público, mas a Suprema Corte proibiu a entrada de câmeras no tribunal, não querendo sujeitar as suas decisões ao brilho da publicidade. Esse não era um tribunal do júri; a decisão partiria apenas do juiz. Embora a televisão tivesse sido vetada, todos os envolvidos cuidaram para que cada passo do julgamento fosse bastante divulgado, uma vez que um dos seus principais objetivos era a educação do público.

Boies e Olson escolheram como querelantes dois casais-modelo, um de homens gays e outro de lésbicas, californianos que, como eles acertadamente presumiram, estariam dispostos a suportar juntos o estresse de interrogatórios que acabaram se estendendo por quatro anos e que sinceramente gostariam de se casar, pela dignidade da instituição e não apenas pelos benefícios fiscais. As duas mulheres também criavam filhos.

Os advogados reuniram como testemunhas especialistas que os ajudariam a definir diversos argumentos: que os homossexuais foram muito maltratados no decorrer da história e ainda hoje eram uma minoria perseguida; que as pessoas que votaram na Prop 8 eram motivadas em parte pela maldade; que as crianças criadas por um casal do mesmo sexo que se amava poderia ter uma vida normal e saudável; que a homossexualidade não era uma escolha de estilo de vida, mas uma orientação impossível de mudar; que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não desestimularia casais heterossexuais de se casar; que o casamento tinha uma dignidade e um prestígio social que não era obtido através da união civil.

Alguns desses argumentos podem parecer óbvios, ou absurdos, ou de importância menor, mas a lei, comprometida como é com os precedentes, às vezes precisa tratar de questões bizarras. E os sustentadores da Prop 8 fizeram algumas declarações estranhas. O advogado que a defendia, Chuck Cooper, só conseguiu levar dois especialistas (e os querelantes convocaram 17), e isso se revelou insatisfatório. Um, que dizia ter lido uma grande quantidade de estudos provando que o casamento gay era danoso, admitiu, após interrogatório cruzado, que a maior parte da sua bibliografia tinha sido reunida pelos advogados e que ele não consultou os documentos.

Opositores ao casamento gay erguem placas afirmando que o sexo homossexual é pecado. São Francisco, Estados Unidos. Foto do usuário “rockbandit” no Flickr.

A segunda testemunha era David Blankenhorn, que perdeu credibilidade quando teve de admitir que o seu diploma da Warwick University tinha sido conferido não pelo seu estudo acerca de casamentos ou famílias, mas por um outro, sobre marceneiros do século XIX. E ele acabou expressando ideias que favoreceram o lado pró-casamento igualitário:

“Acredito hoje que o princípio da dignidade humana igualitária deve ser aplicado a pessoas gays e lésbicas. Como somos uma nação fundada com base nesse princípio, seríamos mais americanos a partir do dia em que permitíssemos o casamento entre pessoas do mesmo sexo”.

Blankenhorn também concordou que não havia provas científicas de que crianças sofriam por serem criadas por pessoas do mesmo sexo.

Até mesmo Cooper fez uma declaração comprometedora. Quando o juiz Walker perguntou acerca do casamento gay para que ele “dissesse como isso prejudicaria casamento entre pessoas de sexo oposto”, Cooper disse as palavras fatais: “Meritíssimo, a minha resposta é: Eu não sei. Eu não sei. O que ele quis dizer é que não temos provas suficientes acerca dos efeitos a longo prazo de casamentos gays, mas a sua resposta foi vista como uma declaração de derrota.

Os querelantes precisavam provar que havia preconceito contra gays por trás da campanha da Proposição 8, o que foi facilmente configurado pelo tom intimidador da propaganda para TV e pela leitura de emails internos. Os documentos mostravam que a Igreja Católica e os Mórmons, velhos opositores da homossexualidade, tinham arrecadado US$ 37 milhões para apoiar a Proposição 8. Um dos patrocinadores mais proeminentes, Bill Tam, um pastor evangélico Chinês-americano, foi muito evasivo, mas enfim admitiu que tinha feito declarações públicas de que o casamento gay levaria à pedofilia, incesto e poligamia. Ele até disse em um panfleto que, se a Proposição 8 não fosse aprovada, “um por um, os estados cairiam nas mãos de Satã. O que viria a seguir? Na agenda deles, o ponto era: a legalização do sexo com crianças”.

Finalmente, Tam praticamente admitiu que não havia provas científicas corroborando seus argumentos.

Boies e Olson invocaram importantes decisões da Suprema Corte para amparar sua causa, dentre os quais Loving v. Virginia (1967) era o mais relevante. Acabou resultando no fim da proibição de miscigenação, concluindo que “a liberdade para se casar foi reconhecida, há muito tempo, como um dos direitos pessoais essenciais para a busca pela felicidade dos homens livres”. Esta decisão ajudou em muito os querelantes. Em Romer v. Evans (1996), a Suprema Corte derrubou uma emenda do Colorado à constituição estadual, aprovada por eleitores em um referendo, que tinha privado lésbicas e gays de determinados direitos civis. Em Lawrence v. Texas (2003), a Corte derrubou uma lei do Texas que criminalizava a sodomia, pois violava a cláusula processual da Constituição que afirma que o governo não pode “privar uma pessoa de vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”.

Uma das declarações mais pesadas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo veio da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg, que afirmou que o caso Roe v. Wade tinha sido decidido de forma prematura, antes de o país estar pronto para isso. Talvez, poderia se argumentar, o país também não estivesse pronto para o casamento gay.

Mas o país estava mudando de ideia em uma velocidade espantosa. Ken Mehlman, uma proeminente figura gay do Partido Republicano, juntou-se à causa e realizou um evento de arrecadação de fundos impressionante. As opiniões de Obama estavam “evoluindo”. Pesquisas mostravam a mudança rápida e generalizada da opinião pública. “Essa é a mudança de opinião pública mais rápida e significativa que já vimos na política americana moderna”, disse um especialista republicano de renome. Ao mesmo tempo, houve uma nova onda de suicídios entre gays adolescentes que provavam que algo precisava ser feito.

A audiência final no processo da Proposição 8 foi realizada em 16 de junho de 2010. Dois meses depois, o juiz Walker entregou a decisão que representou uma grande vitória para os defensores do casamento gay. Segundo ele,“a Proposição 8 tinha como premissa a ideia de que casais do mesmo sexo não são tão bons quanto um casal de pessoas de sexo oposto… Essa crença não é uma base adequada para a legislação”.

Quando o caso chegou à Suprema Corte, juntou-se a outro sobre a Lei de Defesa do Casamento. Uma americana idosa, Edie Windsor, tinha se casado legalmente no Canadá com outra mulher, Thea Spyer, em 2007. Thea havia morrido, Edie foi internada, em luto, e quando saiu do hospital descobriu que devia ao governo federal US$ 363 mil em impostos estaduais (se ela tivesse se casado com um homem, não deveria nada). Edie questionou a Lei de Defesa do Casamento com base no fato de que tratava o casamento entre pessoas do mesmo sexo de forma diferente do casamento heterossexual.

Ela ganhou causa e derrubou a lei. No processo, houve alguns momentos memoráveis; quando, por exemplo, Cooper insistiu que a função do casamento era a procriação, o juiz Kagan perguntou se, caso esse fosse mesmo verdade, seria constitucional negar o casamento a casais heterossexuais com mais de 55 anos. Quando Cooper afirmou que tal casal poderia ser fértil, Kagan garantiu: “não vão nascer muitas crianças desse casamento”.

Dizendo outra frase memorável, o juiz Ginsburg constatou que nos EUA havia “o casamento completo e o desse outro tipo, de nata do leite”. Em outra discussão, o juiz Scalia pediu para que lhe contassem qual foi o momento exato em que havia se tornado inconstitucional negar o casamento aos homossexuais. Como argumentam Boies e Olson no seu livro extremamente lúcido,

“A Corte nunca questionou nem foi capaz de definir o momento exato em que se tornou inconstitucional exigir que os estudantes recitassem a Lealdade à Bandeira, ou rezar na escola, ou usar bebedouros diferentes.”

No dia 26 de junho de 2013, o juiz Kennedy, com a opinião da maioria, concluiu que a Lei de Defesa do Casamento não era válida e servia para “prejudicar e injuriar aqueles que o Estado, graças às suas leis de casamento, deveria proteger a integridade e a dignidade”. Edith Windsor recuperou os US$ 363 mil de impostos que havia pago, com juros. Todos os casais do mesmo sexo casados por lei seriam totalmente reconhecidos pelo governo federal e desfrutariam agora de cerca de 1.100 benefícios federais que antes lhes eram negados.

Ao mesmo tempo, a Corte, embora abrisse caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Califórnia, deixou para outro dia a discussão se o casamento homossexual deveria ser legalizado em todos os estados onde era proibido. No mesmo dia, a Corte havia declarado que a Lei de Defesa do Casamento era inconstitucional, mas se esquivou da questão maior da aceitação nacional do casamento homossexual. Um triunfo para Boies-Olson, mesmo que reduzido.

A repercussão negativa do livro de Jo Becker foi considerável e veio especialmente de blogueiros gays como Dan Savage e Andrew Sullivan. No distante ano de 1989, Sullivan tinha publicado um artigo no The New Republic oferecendo uma defesa conservadora ao casamento homossexual, formulando argumentos sobre o valor da vida em família que depois foram usados por teóricos pró-gays. Becker foi acusada por Sullivan de praticar o chamado “jornalismo de acesso” (pois credita todas as vitórias em prol do casamento homossexual a Chad Griffin e à equipe Boies-Olson, que permitiram livre acesso a todas as deliberações). Ela claramente menosprezou as importantes contribuições de pioneiros como Evan Wolfson, que, em 2004, publicou o divisor de águas Why Marriage Matters: America, Equality, and Gay Peoples Right to Marry [Por que o casamento importa: Estados Unidos, igualdade e o direito de os homossexuais se casarem], e Mary Bonauto, uma advogada que ganhou o direito de união civil para casais do mesmo sexo em Vermont, no ano 2000. Essa foi uma primeira vitória considerável em uma campanha que levou (até agora) ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em 17 estados e no Distrito de Columbia. Um número que só aumenta.

Na última página de Redeeming the Dream, somos informados que os americanos estão aceitando “gays e lésbicas… como membros normais, amorosos e decentes de nossas vidas e comunidades”. Eu não deveria implicar, mas como um homem gay na faixa dos 70 anos, não reconheço nessa descrição a maior parte dos gays elegantes, criativos, provocadores, promíscuos e profundamente urbanos que conheci. Kenji Yoshino, um professor de Direito, escreveu um livro chamado Covering: The Hidden Assault on Our Civil Rights [Encobrindo: o ataque oculto aos nossos direitos civis], no qual “encobrir” é visto como uma maneira de atenuar um traço divergente para poder se adequar ao grande público. Tenho a impressão de que os gays correm o risco de se “encobrir” para ganhar a permissão para se casar. Talvez seja um preço pequeno a se pagar. Não consigo me decidir quanto a isso.

 

Este texto foi originalmente publicado pela The New York Review of Books no dia 14 de agosto como resenha aos livros Forcing the Spring: Inside the Fight for Marriage EqualityRedeeming the Dream: The Case for Marriage Equality e Law and the Gay Rights Story: The Long Search for Equal Justice in a Divided Democracy. A tradução aqui publicada é de Antônio Xerxenesky.

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