Há na experiência contemporânea de pensamento um certo consenso – tanto quanto possa haver consenso na experiência contemporânea de pensamento –, apesar de todas as diferenças que marcam a filosofia ocidental do século XX, de que resta algo de indizível na existência humana, inexpressável por qualquer tipo de linguagem, seja verbal, não-verbal ou artística.
Vão avançadas as discussões sobre o lugar da arte, que nem mais poderia responder pela tarefa de representar o irrepresentável, nem responder por uma estética negativa, capaz de falar daquilo que não se pode falar. Se toda representação resiste a representar aquilo que resta irrepresentável, penso que a nomeação pode ser uma forma alternativa, por não pretender representar, mas apenas fazer um gesto singular de lidar com aquilo que permanece como experiência de segredo.
Partindo do reconhecimento dessas dificuldades, e apenas como hipótese, vou nomear “morte” esse indizível sobre o qual não se sabe, não se pode ou não se consegue falar, embora o noticiário esteja nos colocando diariamente diante do luto, seja com as mortes históricas, como a do candidato Eduardo Campos, sejam com perdas de figuras públicas que já marcaram o ano de 2014, seja com crimes bárbaros. Por tudo isso, há um paradoxo em não saber falar da morte e, ao mesmo tempo, precisar falar da morte.
Até porque, se há algo que se mantém historicamente nessa palavra é a sua ligação com o mistério, a incerteza, o medo e a angústia. Herdeiros que somos da tradição judaico-cristã, convivemos com rituais em torno da morte que estão ligados à ideia de uma passagem em direção à vida eterna. No entanto, se reconhecermos que também nessa tradição há um importante momento de ruptura, quando Nietzsche anuncia que “Deus está morto”, se reconhecermos ainda o declínio da fé nas sociedades ditas esclarecidas, vamos acabar nos deparando com pelo menos dois problemas: a exigência de reconhecer que, para muitos de nós, a morte se apresenta como fim absoluto a partir do qual não há mais nada e, como desdobramento desse reconhecimento, a exigência de pensar na laicidade da morte.
Em um contexto em que a longevidade coloca os sujeitos diante de uma vida orientada para a morte, falar sobre a morte se torna uma exigência necessária para os sujeitos que envelhecem, para a medicina, para a família, para os amigos etc. Entre os inúmeros desafios da morte contemporânea – são tantos que seria impossível abordá-los aqui – está a longevidade e suas consequências sociais. Por definição, longevidade é vida mais longa, e pode parecer um paradoxo associá-la à morte. Como essa longevidade é muitas vezes marcada por um declínio das possibilidades de vida, ela passa a ser apenas a experiência de proximidade com a morte. Daí a necessidade quase imperiosa de falar sobre a morte que se aproxima, seja para que o sujeito possa escolher em que condições quer ser tratado pela medicina, seja para que se possa escolher até onde e quando viver.
Talvez seja o aumento da longevidade que empurra o debate sobre as diferentes possibilidades de gestão do processo do morrer. Filmes como Mar adentro (Alejandro Amenábar, 2004), Amor (Michael Haneke, 2012), ou Uma primavera com minha mãe (Stéphane Brizé, 2013), colocam em questão temas como a eutanásia, a escolha pela morte diante do sofrimento por doença incurável, e as diretivas antecipadas de vontade, as que regulamentam decisões do paciente em relação aos tipos de tratamento aos quais pretende se submeter. A exigência de pensar no direito do paciente de viver até onde seja considerada sua autonomia – palavrinha complicada, eu sei, mas incontornável para o sujeito moderno –, e no tabu do suicídio assistido ou da eutanásia, aqui entendidos como formas de abreviação da vida como dor e sofrimento.
Neste ponto, aparece como questão o problema da laicidade da morte. Marcada historicamente por uma compreensão religiosa, para a morte laica ainda nos faltam aparatos e rituais. Hospitais oferecem capelas, muitos deles têm nomes em homenagem a santos, e nos cemitérios o serviço religioso e suas palavras muitas vezes vazias para familiares que não comungam mais de fé religiosa, fazem parte dos trâmites que acompanham o velório. Faltam às sociedades contemporâneas outros rituais de morte e de formas de elaboração do luto que não estejam ligadas a alguma forma de religião. A modernidade, que pretendeu esclarecer-se ao livrar-se da religião, mantém na relação com a morte um forte apego ao sagrado.
Todos esses debates, que não se esgotam aqui, exigem que se saiba e se possa – socialmente, culturalmente e individualmente – falar sobre a morte. “O que você considera uma boa morte?” ou “Qual é o seu maior medo quando pensa em morrer?” são os temas de um encontro organizado em Londres pelo Death Café. Organização sem fins lucrativos, o Death Café tem como objetivo, segundo relato da revista Piauí, “aumentar a consciência da morte a fim de ajudar as pessoas a viverem melhor”. A ideia inicial foi do sociólogo Bernard Crettaz, que em 2004 começou a organizar na Suíça os “Café Mortels”, experiência posteriormente relatada em livro (Cafés mortels: Sortir la mort du silence). No Brasil, as iniciativas de falar sobre a morte ainda estão restritas ao âmbito dos cuidados paliativos, como bem relata Rachel Aisengart Menezes em seu “Em busca da boa morte”, etnografia realizada no Hospital do Câncer IV do Inca, unidade de cuidados paliativos aos pacientes declarados Fora de Possibilidade Terapêutica (FPT). Estudo crítico sobre a medicalização da vida até no momento em que a própria medicina reconhece a impossibilidade de tratamento, o estudo percebe que a “boa morte” permanece sob orientação médica, e os cuidados paliativos mantêm forte ligação com a espiritualização da morte, como se morrer contemporaneamente fosse necessariamente escolher entre a fé na medicina e a fé na vida eterna.
Se iniciativas como as europeias são possíveis, apesar de todas as dificuldades de falar da morte, é porque começa-se a enfrentar a morte como parte da vida, e não como mera oposição vida/morte, talvez a última das grandes oposições metafísicas ainda a ser desconstruída. Morremos um pouco todos os dias, quando acordamos um dia mais perto da nossa morte, e nunca chegamos a experimentar isso que seria “a” vida como oposição à morte. Vida, aqui entendida como potencialidade de vida, é forçosamente a realização de algo que fica aquém da plenitude dessa potência. Só se chegarmos a reconhecer que “a” vida não existe é que poderemos vir a falar da morte como sua parte integrante, como o que lidamos a cada dia antes de que chegue o momento daquilo sobre o qual não sabemos falar.