Muito próximo de se tornar uma patologia reconhecida pelo instituto de psiquiatria, o fenômeno de “abrir uma editora” segue forte no Brasil. Apesar de todos os anúncios de crise, de ajuste fiscal, de cortes de verba (e todos sabem que a cultura é a primeira vítima de qualquer pacote de austeridade), nascem editoras pequenas e independentes o tempo todo no país. A mais recente no horizonte é a Rádio Londres. Uma busca no Google é infrutífera – no momento em que escrevo esse texto, não há sequer um site dizendo “Em construção”. É preciso investigar para descobrir que a sede fica no Rio de Janeiro e que o publisher é um italiano chamado Gianluca Giurlando.
A Rádio Londres surgiu quase como um boato nas redes sociais – uma editora de nome incomum que publicaria, nos primeiros meses de vida, meia dúzia de livros que o pessoal que não aguarda a tradução em português já tinha lido e aprovado. Romances conhecidos, importantes, amplamente citados, mas que, por algum motivo, nunca chegaram a ser editados no país.
O autor norte-americano John Williams
Stoner, de John Williams, é um desses casos. Trata-se de uma “campus novel” dos anos 1960 que foi redescoberta em 2003, muito depois da morte do autor. Amparada pela divulgação de nomes como Ian McEwan, o romance ganhou certo status cult, sendo publicada nos EUA pela prestigiosa New York Review of Books. O livro, assim como sua trajetória original, é silencioso. Narra a história de um professor (o Stoner do título) de origem rural, a descoberta da literatura em sua vida, os problemas de amor e casamento no início do século XX e as pequenas guerras de departamento que existem na vida real de qualquer professor universitário.
Ao contrário de outros romances situados em um campus de Letras, como A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides, o romance de Williams não gira tanto ao redor do ensino de literatura nem cria fortes paralelos entre o que está sendo discutido nas aulas e a trama central do livro. Não há metaliteratura forçada. A narração é de grande clareza, sem frases de efeitos, sem exageros, recordando bastante o trabalho de J.M. Coetzee (que também flerta com o gênero “campus novel” em Desonra). É fácil perceber o que atraiu Ian McEwan ao romance: há uma cena de perda de virgindade que parece dialogar diretamente com a que o autor inglês apresenta em Na praia (uma cena terrivelmente constrangedora pela sua clareza descritiva, alheia à poesia).
A tradução apresentada na edição brasileira é sólida; a revisão, no entanto, é dolorosa – anotei mais de dez erros de digitação e vírgulas. Felizmente, fui informado, uma segunda edição já está saindo da gráfica com esses equívocos consertados.
Outro livro que a Rádio Londres publicou ao mesmo tempo não poderia ser mais diferente de Stoner. Estou falando de Viva a música, do colombiano Andrés Caicedo. Enquanto Stoner é focado num protagonista quase passivo diante de tudo que a vida lhe joga na cara, Viva a música está centrado em uma protagonista incendiária em busca de uma festa sem fim, que sonha com noites intermináveis. O estilo de Viva a música é apressado e às vezes histriônico. “Vitalidade” talvez seja a palavra-chave.
O colombiano Andrés Caicedo, que cometeu suicídio aos 25 anos de idade
O livro de Caicedo, publicado originalmente em 1977, costuma ser apontado como um dos precursores de Roberto Bolaño. A princípio, a informação procede: Caicedo rompeu o estigma de realismo mágico ou fantástico disseminado pelos autores do boom (especialmente o seu conterrâneo García Márquez) e fez uma obra urbana, urgente, atual. Os personagens parecem estar cientes de que vivem em uma geração perdida e fazem das drogas e da música (primeiro o rock, depois a salsa) o seu cotidiano. No entanto, o tom oferecido por Caicedo é radicalmente distinto do empregado por Bolaño. Caicedo nos contagia com a sua celebração insana do presente; Bolaño vê com carinho e ocasional nostalgia esses agitadores dos anos 1970 (especialmente em Os detetives selvagens), mas seus romances e contos estão marcados por uma dor do fracasso dessa geração. Da violência, da verdadeira violência, nenhum latino-americano dessa época pode escapar, afirma Bolaño em um de seus contos mais conhecidos. A violência, quando aparece na obra de Caicedo, é muito mais estilizada, oscilando entre o realismo documental e o absurdo.
É necessário se levar em conta, além da distância temporal que separa a obra dos dois, o fato de que Caicedo é colombiano, e a Colômbia é um país de história única na América Latina: sua ditadura veio antes e foi muito mais breve. A conexão com os Estados Unidos e a cultura anglófona é muito mais forte (algo que é, inclusive, tema do livro: a migração do rock dos Rolling Stones para a salsa latina), e a instauração dos cartéis de narcotráfico nos anos 1970 rendeu a Colômbia uma infâmia mundial.
Em uma das cenas iniciais de Viva a música, a protagonista, María, troca uma reunião com um grupo de leitura de Marx por uma agitada festa da classe média colombiana. A cena é importantíssima para o livro (e retorna em diversos momentos), pois nos oferece uma chave de compreensão da personagem: María é movida, acima de tudo, pelo desejo de fugir da história. Marx e a política é um pesadelo do qual ela quer acordar. Seu objetivo é substituir a noite pelo dia, tornar a festa mais real do que o quotidiano. Viver uma vida que valha a pena ser vivida. Nesse sentido, a protagonista está, talvez, mais próxima dos personagens da literatura beat norte-americana do que dos poetas perdidos de Bolaño.
Por fim, a Rádio Londres publicará muito em breve Estação Atocha, de Ben Lerner. Trata-se de um dos romances mais interessantes que li deste novo século que vivemos. No meio do caminho entre a passividade de Stoner e a vitalidade de María, o narrador de Atocha é um poeta que viaja à Espanha em busca de algo – entre este “algo”, uma experiência autêntica de arte ou uma sensação de viver a história, o que de certo modo ocorre com o atentado à estação Atocha – mas acaba se perdendo em festas e relacionamentos fugazes. Dos novos narradores norte-americanos, Lerner talvez seja o que mais se interesse por artes plásticas (“The Clock”, a obra de 24 horas de Christian Marclay, é elemento essencial de seu segundo romance, 10:04) e pela relação entre obra e leitor/espectador. Estação Atocha é, no fundo, um romance de formação tradicional, mas com uma reflexão tão forte sobre o contemporâneo (e a ironia que o circunda) que faz do romance uma das maiores surpresas no cenário literário.
Ben Lerner, autor de Estação Atocha
Ouvi dizer que muitas editoras se interessaram por publicar a estreia de Ben Lerner, mas nenhum plano se concretizou. De um editor, escutei que o romance “era pouco comercial”. Essa definição provavelmente se estende aos outros livros que a Rádio Londres está lançando, sem nenhum potencial de se tornarem um megaseller (e casas editoriais acabam precisando de um sucesso imenso para pagar as contas dos livros mais arriscados). Não é à toa que o nome Rádio Londres remete a uma rádio clandestina montada durante a 2ª Guerra Mundial, ícone da resistência antinazista. Abrir uma editora pequena é uma loucura e não deixa ninguém rico – quem investe em livros sabe que qualquer outro produto é mais rentável. A conjuntura do país não indica que a situação irá mudar ou melhorar. Mas fico feliz que alguém é maluco o bastante para publicar estas obras e que finalmente poderei dar de presente Estação Atocha no amigo secreto do fim de ano.