Folia do jeito que ela queria

Por dentro do acervo

06.02.13

“O carioca é um valente e preza o seu carnaval, creio que até mais que o futebol”, afirmou a escritora cearense Rachel de Queiroz na crônica “O Rio, o carnaval e as enchentes”, publicado no Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, em 1996. Os desfiles de escolas de samba e os blocos carnavalescos foram temas abordados em diversas crônicas de Rachel publicadas no jornal paulista na década de 1990. Nos textos dessa época, ela criticou a elitização do Sambódromo, lamentou o desinteresse da população carioca pelo carnaval de rua e, vez ou outra, demonstrou esperança no renascimento dos blocos de foliões.  Blocos que, aliás, têm crescido e multiplicado nos últimos 20 anos.

Suas principais críticas foram a respeito dos caríssimos ingressos e o excesso de mulheres nuas na Sapucaí. Não que ela fosse puritana, o que questionava era nossa sociedade machista, pois não se viam homens nus na avenida: “Carnavalescos exibem as mulheres, mas a si se poupam. Não mostram a pontinha do pé”, destacou Rachel em “A ressaca de um carnaval”, publicada no dia 4 de março de 1995.

Embora reconhecesse a beleza, a exuberância e a magnitude dos desfiles das escolas de samba, a cronista achava que a festa atrás dos muros fechados do Sambódromo, e até mesmo os sambas-enredo, estavam repetitivos: “Um espetáculo com 40.000 atores e plateia de 70.000 pessoas. Um espetáculo mirabolante, inesquecível e único – mas que só dá para ver uma vez.”, afirmou ela em “O carnaval de rua começa a renascer”, publicada em 2 de março de 1990. Na mesma crônica, contou que aos poucos renascia no Rio a velha folia de rua dos anos 1950 e 1960 e já se podia “brincar, dançar, cantar, tomar umas biritas, como nos carnavais de dantes.”

Legenda e crédito: Bloco de rua no centro do Rio de Janeiro, década de 1950. Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles.

O intuito de Rachel era chamar a atenção dos cariocas para o que ela considerava o carnaval tradicional e aberto a todos, com as marchinhas espalhando alegria pelas ruas. Em tom nostálgico, a crônica “Quem sabe nos devolvem o carnaval”, de 28 de fevereiro de 1993, aponta uma transformação no cenário do carnaval do Rio: “O fato é que o povo, o povo mesmo, começa a se desinteressar da cidadela murada, deixando-a para os gringos e paulistas ricos; volta-se com disposição ao carnaval de rua, aos blocos de bairro. Li no jornal que só o Simpatia é Quase Amor juntou mais de 5 mil foliões na rua; e sem falar nos blocos de Ipanema, do Leblon e os inúmeros de Botafogo.”

Se estivesse viva hoje, vinte anos depois de ter escrito a crônica que destacava o ressurgimento do interesse do carioca pela folia nas ruas, Rachel ficaria eufórica com a multidão que acompanha a passagem dos blocos pela cidade. Em 2013, dos 583 blocos inscritos, 492 receberam a permissão da Prefeitura para agitar os foliões. O Simpatia é Quase amor, que desde 1985 tem como grito de guerra “Alô burguesia de Ipanema, olha o SIMPATIA aí, gente!”, agora reúne cerca de 80 mil pessoas. Mas o maior mesmo é o bloco Cordão da Bola Preta, que foi criado há 95 anos. Ano passado, ele arrastou pelo centro da cidade cerca de dois milhões de apaixonados pelo ritmo da bateria e pelas marchinhas de carnaval.

Abaixo, na íntegra a crônica “O carnaval de rua começa a renascer”, de Rachel de Queiroz, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 2 de março de 1990. Além dessa, cerca de quatro mil crônicas da escritora estão disponíveis para consulta no Instituto Moreira Salles.

Afinal o carnaval passou. Porque enquanto duram os chamados “quatro dias de folia” parece não querem acabar nunca, poluindo os jornais e as telas da TV – só deixando livre a rua – que antigamente era o seu império divertido. Pois hoje o carnaval do Rio abandonou a rua e se aprisionou na claustrofobia do Sambódromo. Fechou-se em muros altos, em pontes levadiças, ferozes aramados. Transformou-se numa longa arena, num circo de pista fechada onde evolui a ópera alucinada das escolas de samba.

De festa virou espetáculo. Um espetáculo com 40.000 atores e plateia de 70.000 pessoas. Um espetáculo mirabolante, inesquecível, único – mas que só dá para ver uma vez.

Dantes, quando as escolas de samba eram pobres (a águia da Portela representava então um prodígio mecânico, aplaudidíssimo), havia mais lugar para a inventiva e a originalidade. Mesmo os quadros fixos: a comissão de frente, porta-bandeira e mestre-sala; ala das baianas e a rainha da escola – a bateria – tinham marca própria, identidade e tradição. Agora tudo é féerie, luz, cor, brilho de ouro e mulher nua. Os enredos se complicaram, se intelectualizaram, para acabarem dizendo tudo a mesma coisa: aquele abuso de luxo brega e subliteratura politizada dá sempre o mesmo recado. Querem fazer uma aposta? Misturem a gravação dos desfiles de carnaval de alguns anos para cá, passem as fitas sem identificar o ano em que se gravou e duvido que alguém diga o ano certo! Salvo talvez os urubus do Joãosinho Trinta, as belas cubatas africanas de Quizomba, o Braguinha no seu banco de jardim… O resto é tudo igual, capacetes, plumas, adereços, tribos de negros e índios, gregos e navegadores portugueses, Mamãe-África, minas de ouro etc., senzala e candomblé. E cada vez mais mulher nua, bonitas e feias, bumbuns em exposição exaustiva colhidos por câmeras que desdenham o erotismo simples do remelexo da mulata pelos desvios do pornô explícito, colhidos em ângulos que só o câmera acocorado apanha, de baixo para cima. Não esquecer que esse tipo de carnavalesco só é visto nas telas de TV, ou pelo público capaz de comprar os caríssimos ingressos na Sapucaí, onde o sentar num degrau de arquibancada custa pelo menos um salário mínimo. Os camarotes, esses, de tão caríssimos, são adquiridos em geral por firmas poderosas que os partilham com os seus executivos e PDGs.

A sorte é que essa discriminação, forçada, pelo custo do espetáculo, está produzindo um resultado que se pode julgar compensador: aos poucos renasce no Rio o velho carnaval de rua, o mesmo que nunca deixou de existir e cada dia tem mais força, no Recife e na Bahia. Começou pelas bandas e blocos: a famosa Banda de Ipanema, o Simpatia é quase amor, na Zona Sul. E pelos outros bairros brotam os blocos e cordões onde o folião espontâneo brinca e arrasta a multidão. A Avenida Rio Branco também volta a se movimentar, cheia de mascarados e sambistas. Já se pode brincar na rua, dançar, cantar, tomar umas biritas, como nos carnavais de dantes.

E assim, com o tempo, todo mundo vai ficar feliz. Lá no recinto fechado do Sambódromo, as escolas, cada vez mais disciplinadas na sua função de companhias operísticas, no seu samba do Crioulo Doido, nos seus custosos e monótonos e repetitivos espetáculos.

E, do lado de fora, o velho carnaval recuperado, os sujos, as frigideiras, os homens de saia e sutiã, o espírito das ruas explodindo – que afinal todos somos filhos de Deus, com direito ao nosso quinhão de alegria e – por que não? – de loucura.

* Cecília Himmelseher é assistente cultural da Coordenadoria de Literatura do IMS.

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