Hullo old chaps

Correspondência

08.02.11

Galera,

Fiz três viagens dessas para fora, sozinho, quando era adolescente, mas a melhor mesmo foi essa que falei da Inglaterra, em 1997. O grupo era exclusivamente de americanos, e eu era o único estrangeiro, e o mais novo, entre cem pessoas. O programa oferecia uns cinqüenta cursos, que iam de arqueologia a gerenciamento de lojas, e para os americanos, que estavam no último ano de colégio, a viagem rendia uns créditos importantes no currículo. Eu não tinha nenhuma obrigação acadêmica e podia pegar leve. Fiz o curso de jornalismo, que era um dos poucos que chegava a formar um grupo; no geral, cada programa não passava de dois alunos.

Cheguei no meio da semana e perdi a confraternização inicial, então não consegui falar com ninguém nos primeiros dias. A gente acordava cedo, cada um ia sozinho para o seu curso, depois tínhamos a tarde livre e algum programa coletivo à noite. Esse era quase sempre curto ou opcional, e os grupos já estavam todos formados, então eu ficava dando banda. Tinha um fliperama ali ao lado, cinemas e um restaurante chinês especializado em fritopan, e que funcionava num esquema campeão de “tudo o que você conseguir comer em quarenta e cinco minutos”. Não havia nenhuma cobrança de convivência coletiva, e eu só precisava assinar um papel quando voltasse, antes das duas.

A primeira semana foi massa. Comprei uma pilha de gibis do Dave Sim, quilos de um salgadinho picante com um camarão de cartola na embalagem, e ficava com a minha mochila de cima para baixo, parando para me entupir do tal SAUCY SHRIMP, ler e fumar. Depois de um tempo, foi dando desespero. Eu só falava com as pessoas durante o curso e em uma ou outra atividade, e comecei a sentir falta do chamado contato humano. O povo era meio goiaba, não havia jeito de me enturmar, e eu também fui ficando entediado de sair sozinho à noite. Era uma viagem de dois meses, e ao fim da segunda semana eu comecei a entrar realmente em pânico.

Fui lavar a roupa ao lado do chinês, e ia aproveitar os quarenta e cinco minutos da máquina no bufê de fritopan. Dava para cortar caminho por trás de um supermercado, e quando eu estava passando avistei um colega de viagem, que fazia curso de fotografia no mesmo prédio onde funcionava o jornalismo. Ele estava fumando tabaco Camel de enrolar, que era bem mais barato do que os Silk Cuts que eu fumava. Expliquei que não sabia enrolar cigarro, e que já tinha gastado uma fortuna, e fomos até um bar comprar um pacote de tabaco pra mim.

Acabou que tomamos um porre gigantesco de gim e rum, num pub infecto ao lado de King’s Cross. Duas mulheres bem mais velhas que nós estavam jogando dardos, e a gente praticou o gangsterismo afetivo intenso pra cima delas, ainda que sem sucesso. Derrotados, voltamos aos berros pelo metrô e comecei a notar que meu chapa era encrenqueiro. Na descida da escada rolante, ele virou a bunda para dois engravatados que vinham na outra direção e fez um HULLO OLD CHAPS, mexendo as nádegas.

As cousas foram melhorando. Ficamos realmente muito amigos, em questão de dias, e logo o pub infecto ao lado de King’s Cross virou uma segunda morada. A gente batia um almoço depois do curso, um balde de galinha frita pra mim e uns sanduíches vegetarianos com cara de doença pra ele, eu pegava um filme qualquer e nos encontrávamos de noite, para beber no tal pub, cujo nome era algo como Donoghue, e que nós rebatizamos de Diarrhea.

Ele era vidrado em punk, um universo novo para mim, que àquela altura achava que Sex Pistols e Clash eram bandas autênticas. Eu estava numa fase de ouvir hardcore (me deixa), umas bandas muito bundonas, e foi meio que um alívio. Parei de ouvir Shelter (eu gostava, desculpa) e migrei para CRASS, Subhumans, Dirt, Conflict, Flux of Pink Indians e Rudimentary Peni, coisas que gosto até hoje. A gente também ouvia muito Pogues, em especial uma música chamada Sally McLeneanne, que tinha um refrão ótimo para se berrar e ser inconveniente.

Em determinado momento, descobrimos que o Shane MacGowan, vocalista do Pogues, frequentava um pub chamado Filthy McNasty’s Whiskey Cafe, e migramos do Diarreha pra lá. Não encontramos o cara, mas esse último mês foi muito sensacional. Eu ia direto do curso até as palestras do Marxism 97. Depois, já encontrava com o meu chapa no McNasty’s e a gente ficava lá na ruína até dar o horário. Voltávamos aos berros de I TOOK THE JEERS AND DRANK THE BEERS AND CRAWLED BACK HOME AT DAWN no metrô, arrumando confusão com torcedores de futebol (nunca apanhamos, pelo que me lembro).

Fiquei pensando nessa viagem desde a última carta, e com a tua resposta me animei até para dar uma fuçada na pasta onde guardo as velharias de 97. Não vou dizer que a viagem mudou a minha vida, é um pouco forçar a barra. Engraçado que, durante a estadia em si, você tem certeza que alguma mudança grande aconteceu, e dá uma sensação de que as coisas não voltarão a ser as mesmas em casa. E de fato na primeira semana de Brasil ainda segurei um pouco da viagem. Depois, nosso jeito normal de pensar vai se insinuando, e aos poucos o dia-a-dia assimila a experiência anterior, normaliza e você não consegue nem explicar para um amigo porque a viagem foi tão boa. Em dois meses de São Paulo eu já tinha perdido completamente o contato com o meu chapa, que morava em Los Angeles.

Hoje não consigo imaginar verminose egocêntrica maior do que dar escândalo de adolescente bêbado no metrô, mesmo que por motivos que me pareciam corretos. Se vejo um moleque desses berrando, não dá para enxergar muito além do pirralho mimado, ainda que às vezes não seja o caso. É também o motivo pelo qual me afastei de muitos amigos de adolescência: eles seguem procedendo dessa maneira sempre que bebem, e da última vez que saí com um deles fui expulso de nada menos do que oito bares, totalmente envergonhado e me desculpando pelo camarada.

Também gosto de narrativas, velhinho. Essa história desnecessariamente longa era uma maneira de responder ? sem responder, como você havia pedido ? à sua pergunta anterior. Só numa narrativa você consegue ao mesmo tempo passar por uma espécie de amadurecimento político e ser um verme adolescente egocêntrico e metido a rebelde tão completo. Na cabeça essa é uma operação de outra natureza, e todas as aparas que inserimos para dar sentido (à viagem, à política, aos amigos que vão e ficam) são macetes artificiais. O grande barato, me parece, é identificar e criar uma narrativa usando esses macetes.

Mas acredito mesmo que haja alguma espécie de atitude pessoal válida (nossa, como eu desprezava), que não tem nada a ver com ética e moralismo, com caráter e ser justo e essas merdas, e sim, novamente, com empatia, e que de algum jeito costura isso que estamos falando. Mas vai saber. No Ano Novo tomamos aquele porre gargantuesco e é pouco provável que eu não tenha dado algum vexame. Verminose, egocentrismo, deve haver um pouco disso tudo na história, mas na minha narrativa pessoal das cousas, lembro muito de voltar para casa sozinho, às onze da manhã, pensando que esse ano ia ser bacana.

O ano ainda está meio truncado, mas enfim, vai dar.

Abraços

PS. É esse fim de semana agora? Vamos virar Mario Galaxy 2? Voltei a fumar, estou mais calmo.

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