Jazz em NYC

Música

20.09.11

O meio de jazz aqui em Nova York é indissociável da caminhada noturna por lower Manhattan: o pessoal de Wall Street flertando nos pubs, cansados mas exercendo a juventude; antigos moradores voltando de mercadinhos que só aceitam dinheiro; a solteira de pijama passeando com seu cão; o casal discutindo de lados opostos da rua; o pessoal do subúrbio que enche a lapiana MacDougal Street; atravessar uma larga avenida e ver a extensão da cidade; mendigos preparando seus ninhos de papelão e jornal; moças magrinhas equilibrando saltos agulha em paralelepípedos, apoiadas em braços excessivamente fortes; o cozinheiro chinês de cócoras, fumando um cigarro… A noite torna a cidade meio atemporal.

Meus dois lugares prediletos ficam a um quarteirão do outro, mas levei meses para descobrir a proximidade: West Village é um labirinto. As ruas do Lower East Side, Tribeca, Nolita e SoHo obedecem, de modo geral, o sentido norte-sul, leste-oeste. O West Village não: a rua quatro cruza com a dez. Só fui me entender por ali quando descobri a Estrela do Norte para me guiar: o elegante Empire State Building, trinta quarteirões ao norte, centralizado na ilha, retirado de sua aposentadoria de mais alto da cidade há exatamente uma década. O mês de setembro não é outono mas já não é verão, as árvores ainda não começaram a mudar de cor mas seu verde é mais espesso, de uso.

O primeiro que frequentei foi o Village Vanguard, por onde tantos imortais passaram – penso imediatamente em Bill Evans gravando ali, piano-solo, I loves you, Porgy, acompanhado por leves toques de talheres de pessoas jantando em 1960, o que me leva a Miles tocando a mesma música e de novo a Miles tocando Someday my prince will come, música da Branca de Neve cercada de passarinhos e bichinhos da floresta, quando Evans ainda era de seu grupo e quando o trompetista disse, ao colocar um branco na sua banda, “the best mother fucker to ever play the piano” e Evans anos depois tocando a música com seu trio. Foi mais ou menos assim entrar no Vanguard e ver Paul Motian, de oitenta e poucos anos, baterista que descansou as baquetas enquanto Evans fazia seu momento-solo na noite de 1960, hoje tocando com músicos jovens, ali em pura deferência ao mestre, à lenda, pois tocar mesmo ele não consegue mais.

Já não servem jantar no Vanguard, é preciso recorrer às pizzaria-botecos em volta, que aliás são ótimas. Todo mundo fala dos cachorros-quentes, mas bom mesmo são as pizzas de NY. Naquela noite o Vanguard não estava cheio e Motian em determinado momento elogiou isso, humildemente levantando e impostando sua voz frágil lá de trás da bateria: “Hoje está como nos velhos tempos”. No final da noite eu o vi indo embora com sua baqueteira, subindo as escadas que dão na sétima avenida, sob o toldo vermelho. Será que ele é casado com a mesma mulher, que aguarda em casa ainda? Mas além de Motian, por lá passam muitos dos melhores músicos e compositores de hoje, que dia após dia vertem a inevitável nostalgia status quo de tal lugar em ânimo por estarmos vivendo algo especial.

O outro local fica a uma quadra ao sul, no enigmático cruzamento da rua quatro com a dez, e se chama Smalls Jazz Club, ou Smalls – uma quadra ao norte seria o enorme e mais famoso sex shop de downtown Manhattan. Ali é como diz o nome, muito pequeno; e tem um gato simpático que mora lá e fica passeando entre a plateia espremida. Faz todo sentido: aqui músicos de jazz são chamados de cats. Quase toda segunda-feira toca Ari Hoenig, um dos grandes bateristas de jazz da geração em plena atividade. Ele, como o Motian de hoje, é sempre líder de seus grupos, ora trio, ora quarteto, e toca com um espírito de quem faz e desfaz gol, com uma intensidade que nunca vi na vida. Vidrado como fico nele, só em João Bosco sobre seu banquinho, pois o outro João nunca vi tocar ao vivo; ou como leio ainda outro João, de quem peguei emprestado a palavra “espesso” parágrafos atrás. E falando em poeta, talvez a caminhada para casa seja equivalente ao que Szymborska diz, no final do poema “Impressões de teatro”:

 

Mas a queda da cortina é o momento mais levitante,
as coisas que você vê logo antes dela atingir o chão:
aqui uma mão rapidamente alcança uma flor;
ali outra pega a espada que caiu.
Só então uma única, última mão
faz seu dever
e agarra minha garganta.

 

* Sylvio Fraga Neto é crítico de arte, poeta e compositor. Foi diretor do Museu Antônio Parreiras (Rio de Janeiro).

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