Nova York some do mapa

serrote

29.08.11

O apocalipse, pelo jeito, é tão nova-iorquino quanto sanduíche de pastrami ou Woody Allen. É bem verdade que, depois da catástrofe pouco natural do 11 de setembro, há motivos de sobra para o alarme que, no fim de semana passado, deixou suas ruas desertas como num filme B. Mas em 1936, muito antes do Irene ou do 11 de setembro,  a cidade já tinha desaparecido nas páginas da “New Yorker”, que era e ainda é um fiel retrato do espírito da cidade.

“The catastrophe” ocupa apenas uma página. Meio solta na edição, é uma estranha parábola do que acontece depois do choque de dois meteoros. O primeiro, em um 14 de março, cai no mar, perto de New Jersey.  O segundo, no dia seguinte,  acerta em cheio Manhattan, que afunda apinhada de 7,5 milhões de novaiorquinos e meio milhão de turistas que “de toda forma, ligam muito pouco para a cidade”.

Aos poucos, os Estados Unidos começam  a se dar conta das dimensões da tragédia: donos de ações tem que assumir o controle de empresas (já que todos os boards de diretores se foram), há escassez de dois dos principais produtos da cidade, roupas femininas e campanhas publicitárias. Logo seguem-se ondas de piadas sobre “A Catástrofe” e, depois, ondas de filmes. Cinco anos mais tarde, não há mais mapas que incluam Manhattan. Passados vinte, há poucas testemunhas, que recordam, emocionadas, a vista do alto do Empire State Building ou os letreiros da Broadway. “Mas ninguém tem a coragem de contar a eles que Nova York foi inventada por H. G. Wells”, diz a última frase.

Lapidar em ironia e concisão, “The catastrophe” é ainda mais interessante por ter sido o único texto assinado pelo mítico editor William Shawn http://www.nytimes.com/learning/general/onthisday/bday/0831.html em seus 54 anos de revista. Quem deu a dica foi o João Gabriel de Lima, que sabe tudo de “New Yorker” e é editor da “Bravo!” Fuçando nos arquivos da revista http://tinyurl.com/3g7cpco, encontrei 169 menções a Shawn – 167 indicando colaborações não-assinadas e uma em seu obituário.

Conhecido pelo rigor com que intervinha nas reportagens e pelo temperamento introspectivo e circunspecto, é curioso que Shawn tenha escolhido assinar um texto distante de grande parte do jornalismo que ajudou a construir.  Mas não exatamente difícil entender que, às avessas, trata-se de uma profunda declaração de amor à cidade.

O que se conhece de sua vida pessoal está nas lembranças dos outros  – e sobretudo num livro de Lilian Ross, repórter da revista, que foi sua amante por 62 anos. O título, admirável, é “Here but not here” http://www.nytimes.com/books/98/06/07/reviews/980607.07mcgratt.html, que pode se referir pelo seu declarado gosto de viver à sombra, nos bastidores da revista e, também, pela escolha de viver ostensivamente dois casamentos simultâneos, ambos com filhos.

Amar Nova York  na cabeça do jovem Shawn, que àquela altura ainda não havia assumido o comando da revista, era fantasiar a sua destruição.  E, nostalgicamente, atribuir sua existência, privilégio dos poucos que a conheceram, à imaginação de Wells, um mestre criador de mundos fantásticos.

(Em tempo: E. B. White, outro dos escritores fundamentais da revista, também deixou uma declaração de amor à cidade, o ensaio “Here is New York”. Mas, curiosamente, também imagina, em 1948, uma cidade ameaçada por aviões que… derrubam torres.)

A ambiguidade de uma catástrofe que preserva é a mesma do homem que, sendo pouco dado a expressar sentimentos, leva Lilian Ross e Erik, o filho que os dois adotaram, até o velório de Duke Ellington no Harlem. E, de volta à casa, passa a ouvir seus discos chorando copiosamente.

Ninguém nunca esteve tão ali quanto ele.

Foto de Paulo Roberto Pires.

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