Killer Joe, manifesto subversivo

No cinema

14.03.13

Como a maioria dos críticos, sempre encarei William Friedkin como um eficiente e pouco mais que rotineiro cineasta de entretenimento, que ocasionalmente acerta a mão, como em Operação FrançaO exorcistaViver e morrer em Los Angeles. Mas eis que, aos 77 anos, como quem chuta o pau da barraca, Friedkin joga na nossa cara um dos thrillers mais contundentes e corrosivos do cinema americano recente, Killer Joe.

http://www.youtube.com/watch?v=Smy4AvMqaQA

O filme mostra sua força logo nas primeiras imagens. Sob uma tempestade de raios, um rapaz (Emile Hirsch) grita um nome, Dottie, e bate desesperadamente às portas e janelas de um grande trailer (moradia de gente pobre nos EUA), até que uma mulher seminua aparece na fresta de um porta. Só a vemos da cintura para baixo, com o triângulo peludo do púbis no centro do quadro. Que outro filme americano recente já começa com um nu frontal tão despudorado?

Depois de uma ríspida troca de palavras, o rapaz entra e, em poucos minutos, delineia-se o contexto todo: ele foi ali para convencer o pai (Thomas Haden Church) a ajudá-lo a matar a mãe, que supostamente lhe roubou um pacote de cocaína, o que o deixou em maus lençóis com os traficantes locais. Pela proposta, pai e filho dividirão o valor do seguro. A peladona da porta é a atual mulher do pai (Gina Gershon). Dottie é a irmã mais nova do rapaz (Juno Temple), uma adolescente sonâmbula cuja inocência extrema faz fronteira com a debilidade mental.

O avesso do sonho americano

Daí para a frente, haverá uma progressão sem trégua da violência (sobretudo psicológica) contida nesse prólogo. O estilo narrativo de Friedkin é de uma objetividade absoluta, inexorável, sem gordura, sem tempos mortos, sem conversa jogada fora, na escola de Fritz Lang e Samuel Fuller. A entrada em cena do matador profissional (Matthew McConaughey) – o Killer Joe do título – tem o efeito de uma catálise. Ele é uma espécie de anjo exterminador que faz vir à tona o pior de cada um. E ninguém é santo nessa história. Com a possível exceção da ninfeta Dottie, todos agem movidos egoisticamente pela cobiça e pelo sexo.

A família unida, o culto ao trabalho, a comunidade fraterna, a liberdade individual, a prosperidade coletiva – todos os festejados valores do American way of life são virados impiedosamente do avesso nesse drama pontuado pela ironia e pelo humor negro, que chega ao ápice na cena em que o assassino conclama a família a rezar uma prece de agradecimento ao redor da mesa. O sonho americano tornado pesadelo. Não é por acaso que a história é ambientada no Texas profundo e que o matador usa chapéu e roupas pretas, como um vilão de faroeste. Só que ele é um policial da ativa, um representante da lei e da ordem, um braço do chamado estado democrático.

Em outras palavras, não há mocinhos aqui. Ninguém com quem se identificar, ninguém por quem “torcer”. Por isso a violência – que perto do final se torna mais física, sem deixar de ser psicológica e moral – não é catártica, e sim desconfortável, perturbadora. E o último plano do filme é de uma ironia quase insuportável. Vale por um manifesto.

O contraponto de Ken Loach

Uma visão não menos crítica, mas mais otimista, da realidade dos excluídos é apresentada por outro veterano, o britânico Ken Loach, em A parte dos anjos. Escrevi brevemente sobre ele aqui, por ocasião de sua exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado. É outro filme que merece ser visto. Aqui, o trailer: 

http://www.youtube.com/watch?v=NcQIvmR21VU

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