O baú de Hemingway

Literatura

01.12.15

Perguntado se poderia dar opinião sobre o original de um aspirante a escritor, Ernest Hemingway é taxativo. “Minha opinião é que eu odeio.” Sem nem ter posto os olhos no manuscrito, ele continua: “Se for ruim, vou odiar, porque odeio coisas mal escritas. Se for bom, vou ficar com inveja e vou odiar mais ainda”. Essa cena e esse Hemingway foram inventados por Woody Allen em Meia-noite em Paris. Mas o Hemingway da vida real talvez não fosse tão diferente disso. No caderno de uma colega de escola, ele é descrito como “egoísta, dogmático e de certa maneira detestável”.

Esta página – assim como páginas de outros cadernos, entradas de touradas, medalhinhas com identificação de cachorro, cartas, manuscritos, passaportes, fotos, primeiras edições e listas de possíveis títulos para livros – faz parte de uma prolífica memorabilia, reunida pela primeira vez na exposição Ernest Hemingway: Between Two Wars, em cartaz até o dia 31 de janeiro na Morgan Library, em Nova York.

Visto emitido pelo Departamento de Guerra em 1944 a Ernest Hemingway (John F. Kennedy Presidential Library / Reprodução)

Hemingway não jogava nada fora, era um acumulador. Seu acervo – o recorte da exposição vai de 1918, quando ele tinha 18 anos e, com a perna machucada, era motorista da Cruz Vermelha em Milão, até a Segunda Guerra, abarcando o período em que passou por Paris, Key West e Havana – deixa isso claro.

Algumas peças do arquivo já estavam sob a guarda da Morgan Library, mas a maioria foi emprestada da Biblioteca e do Museu do Presidente John F. Kennedy. Assim que Hemingway morreu, sua quarta mulher, Mary Welsh, que era amiga de Jacqueline Kennedy, doou a papelada do marido para a coleção do então presidente, fã do escritor (depois de Nova York, a exposição segue para a sede do acervo de Kennedy, em Boston).

Mary Welsh, por sinal, recebeu cartas bastante doces de Hemingway. Em uma, ele se desculpa por não saber muitos adjetivos. Desculpa-se também por ser tímido ao telefone. Em outra, pede que ela lhe escreva: “Se alguma coisa acontecesse com você, eu morreria, assim como um animal morre no zoológico se algo acontece com seu companheiro. Muito amor, minha querida Mary, e saiba que não sou impaciente. Sou só desesperado.”

Em entrevista a George Plimpton para a Paris Review, Hemingway chega a dizer que a melhor escrita, sem dúvida, é quando se está apaixonado. “Preocupações destroem qualquer habilidade para escrever”, ele adverte. Segurança financeira também é recomendável. Mas o importante mesmo, ele diz, é que o escritor tenha passado por muitas experiências, e esse tipo de conhecimento não pode ser ensinado.

Mesmo quando Hemingway já era Hemingway, ou estava prestes a virar Hemingway, ele nem sempre era tão seguro de si. Numa comovente carta aos pais em 1925, um ano antes de lançar O sol também se levanta, ele explica que em todas as histórias está tentando dar a sensação de vida real, e não apenas de vida descrita. “De forma que, quando ler alguma coisa que escrevi, você vai efetivamente experimentar a coisa. Você não pode fazer isso sem colocar a parte ruim e feia, assim como a parte que é bonita.”

Hemingway escrevia em pé. Isso dá pra perceber. A economia do texto, as frases curtas, sem nenhuma gordura. Primeiro a lápis, depois passava para a máquina. Num artigo para a Esquire, ele diz que “escrever primeiro a lápis te dá um terço a mais de chance de melhorar. Isso é .333, que é uma média boa à beça para um atirador”.

A exposição inclui também cartas de Scott Fitzgerald a Hemingway. Em uma delas, sobre O sol também se levanta, Fitzgerald sugere que ele corte os dois primeiros capítulos do manuscrito, criticando o tom jocoso desproporcional (“elephantine facetiousness”) do começo. Em outra, quase dez páginas de comentários sobre a versão datilografada de Adeus às armas, o autor de O grande Gatsby conclui: “É um belo livro”. Até então, os dois eram bons amigos. Apesar de Hemingway ter acatado algumas das sugestões, a amizade terminaria em breve, conforme se vê na frase escrita logo abaixo, a lápis: “Kiss my ass / EH”.

Em outra carta, já mais velho e aficionado por assuntos marítimos, época de O velho e o mar, Hemingway recebe a mensagem de um representante da Abercrombie and Fitch. A marca, que vendia artigos esportivos, tinha recebido do fornecedor um novo modelo de vara de pescar e mandava duas para o escritor. A ideia é que ele fizesse o maior esforço possível para tentar quebrar as varas (era um teste de resistência).

“Egoísta, dogmático e de certa maneira detestável”. Que escolha de palavras! Quando Plimpton lhe pergunta, naquela mesma entrevista para a Paris Review, o motivo de ter reescrito a última página de Adeus às armas 39 (trin-ta-e-no-ve) vezes, Hemingway, como sempre, é sucinto. Diz que precisava achar as palavras certas.

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