O colecionador de epígrafes

Literatura

13.12.11

 

“Penso frequentemente nessas amizades travadas
a partir das dedicatórias, das epígrafes.”
Kelvin Falcão Klein

“Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio”. Já li bastante Baudelaire em minha vida, mas sei citar apenas uma frase de cor, esta aí, sobre o oásis de horror. Não é porque ela faz parte de algum poema muito especial para mim, não, nada disso. Conheço a frase de um contexto completamente distinto: foi escolhida como epígrafe para o gigantesco romance 2666, do autor chileno Roberto Bolaño. O livro 2666, para quem não sabe, é um calhamaço de mais de 1000 páginas (na edição original), dividido em cinco romances menores, com dezenas de personagens e um enredo que vai da Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje. Estudo o escritor chileno na faculdade há um punhado de anos, e nunca soube direito como trabalhar com 2666, pois a obra oferece muitas portas de entradas. Recentemente, tenho pensado no monstruoso romance a partir de partes mínimas: o título (que, ao mesmo tempo em que aponta para uma data futura, faz referência ao número da besta, ligando o futuro ao apocalipse), a palavra final (“México”, que dá um caráter circular ao livro) e a epígrafe.

A frase de Baudelaire ainda permanece envolta em mistério para mim. O que diabos Bolaño quis sugerir ao adotá-la? Ou, ignorando a intenção do autor, que sempre será inacessível (e que, no fundo, não interessa), quais leituras do romance a epígrafe suscita? O que seria este “oásis de horror no meio de um deserto de tédio”? Parece-me uma referência clara às centenas de assassinatos das mulheres no meio do deserto de Sonora, fatos narrados no núcleo de 2666. Mas por que um “oásis”? Consigo bolar umas três interpretações, mas todas me parecem equivocadas. E aí você me pergunta: por que passar tanto tempo pensando numa maldita epígrafe?

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Sou viciado em epígrafes. Levo-as a sério como muitas pessoas levam os títulos a sério. Folheando livros aleatórios em livrarias, sempre leio as epígrafes, e, por mais incrível que pareça, sou capaz de comprar uma obra por causa delas. Exemplos de reações: “Hmmm, uma epígrafe de Walser! Interessante! Esse/a escritor(a) gosta das mesmas coisas que eu!”, ou: “Hmmm, uma epígrafe de Shakespeare! Que ambicioso!”. Esses dias, estava em dúvida sobre o que ler da minha pilha de livros na cabeceira, então comecei a ver as epígrafes. Ao abrir Pornopopéia, de Reinaldo Moraes, me deparei com a seguinte frase de um “autor anônimo do século XX”: “Tem dia que de noite é foda”. Caí na gargalhada. Pronto, estou convencido. Tenho certeza que o tom do romance está anunciado nesta frase cômica e absurda do autor anônimo. Moraes saltou para o topo da pilha. Uma epígrafe boa pode ter o mesmo efeito de uma frase inicial impactante. Penso no início de Respiração artificial, de Ricardo Piglia: “Dá uma história? Se dá, começa há três anos”. Tem como não ficar com vontade de ler depois disso?

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O que faz uma boa epígrafe? Obrigatoriamente, tem que ser uma frase que chame a atenção e funcione ainda que retirada de seu contexto original. Além disso, as melhores epígrafes são aquelas para as quais você retorna depois de terminar de ler o livro. “O corpo contém a história da vida tanto quanto o cérebro”: Philip Roth escolheu essa frase da romancista irlandesa Edna O’Brien como epígrafe de O animal agonizante. Parece-me impossível não retornar à frase de O’Brien depois de terminada a leitura do romance. As ações de Kepesh, no final do livro, são praticamente explicadas e justificadas pela epígrafe.

Mas o que torna a epígrafe única é o fato de que ela articula relações entre dois autores distintos. Ao escolher a epígrafe, o escritor está sugerindo conexões intertextuais e possíveis diálogos entre dois artistas e suas obras. Bolaño selecionou Baudelaire porque é um leitor de Baudelaire. O chileno nunca citaria García Márquez ou Vargas Llosa, dois autores que criticou duramente em vários artigos. Exceto se fosse de forma irônica, como o fez W.G. Sebald, ao colocar um elogio que o autor alemão Andersch fez a si mesmo como epígrafe de um ensaio no qual ele, Sebald, devasta o tal autor.

Jorge Luis Borges, mais que qualquer outro, brincou com as epígrafes, extraindo frases esquisitas de livros estranhos e esquecidos (quando não fictícios, suspeito). O catalão Enrique Vila-Matas pode ser considerado um discípulo de Borges, ao transformar citações falsas e deturpadas em matéria-prima de seus livros. Preciso urgentemente revisar as epígrafes de Vila-Matas. Tenho certeza que encontrarei várias falsas.

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Encerro meu discurso apaixonado de colecionador de epígrafes com uma anedota pessoal. Desde que comecei a escrever meu livro de contos A página assombrada por fantasmas, tinha decidido usar como epígrafe uma frase de John Barth, de seu conto “Lost in the funhouse”. Eu acreditava que aquele conto – e aquela frase – resumia tudo que eu havia tentado desenvolver em minha obra. Meu livro foi publicado em meados de 2011 e eu estava satisfeito com a escolha. Isto é, até o dia em que reli A biblioteca de Babel, de J.L. Borges, e me deparei com a seguinte frase: “A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. Talvez eu seja completamente maluco, mas, desde então, não consigo olhar para meu livro de contos sem pensar que ele ficaria muito melhor com essa epígrafe de Borges. Quem sabe numa segunda edição?

** Na imagem da home que ilustra este post: o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867)

 

 

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