O noir essencial de Hawks

No cinema

23.11.12

Dizem que o DVD – o digital video disk – vai acabar, e não demora muito. Mas, enquanto sobrevive, ele às vezes nos brinda com regalos preciosos. É o caso do DVD duplo À beira do abismo, da Versátil, que traz duas versões, a “oficial” e a do diretor, do clássico The big sleep (1946), de Howard Hawks. De quebra, inclui também o medíocre remake feito pelo mão-pesada Michael Winner em 1978 e intitulado no Brasil A arte de matar.

Baseado no intrincado romance policial de Raymond Chandler – mestre, ao lado de Dashiell Hammett, da chamada literatura hardboiled -, o filme de Hawks é um marco do cinema noir. Dado o estilo substantivo, direto e sem afetação do cineasta, ele representa uma espécie de quintessência do gênero, aquilo que ele seria sem o recurso aos elementos acessórios que se tornaram cacoetes inseparáveis da ideia que se tem hoje do noir (a narração em off, ventiladores de teto, abuso do contre-plongée, iluminação expressionista, persianas na contraluz, névoa permanente etc.).

Teia de crimes

No mais, está tudo ali: o cínico mas profundamente moral herói chandleriano, o detetive Philip Marlowe (Humphrey Bogart, claro); uma beldade ambígua (Lauren Bacall) que o mergulha numa teia de intrigas e crimes enigmáticos; um pano de fundo de corrupção moral e degradação social; um erotismo que se alimenta do perigo, da curiosidade e da dúvida.

http://www.youtube.com/watch?v=VjJlBnfyiI4

Em linhas gerais a história é a seguinte: Marlowe é contratado por um general idoso e paraplégico para lidar com a chantagem exercida por um escroque contra sua desmiolada filha caçula (Martha Vickers), mas ele acaba se envolvendo é com a filha mais velha (Bacall) e resolve investigar por conta própria o desaparecimento do detetive que o precedeu no emprego.

Sobre a complicação da trama, basta dizer que a certa altura de seu trabalho, os roteiristas (entre eles William Faulkner) ficaram em dúvida sobre a autoria de um determinado assassinato, o do motorista da família do general. Hawks telegrafou então para o autor do livro, pedindo esclarecimento: quem matou, afinal? Chandler releu o romance, quebrou um pouco a cabeça e respondeu: “Não sei”. O saboroso incidente é contado no livro A cidade das redes, de Otto Friedrich.

Marca pessoal

Pois bem. O que interessa aqui é a marca pessoal que Hawks imprimiu à história criada por Chandler. Ao abrir mão da narração em off em primeira pessoa pelo protagonista, o diretor reafirmou sua fé na imagem e nos diálogos para contar uma história de um modo especificamente cinematográfico. Mas se manteve colado ao ponto de vista do herói, que está em todas as cenas. Descobrimos as coisas (inclusive as pistas falsas) junto com ele, passo a passo.

Uma mudança importante de abordagem, em relação ao livro, é que o Marlowe de Chandler é um homem pouco interessado em mulheres e termina a história sozinho. (Vale lembrar que The big sleep é o primeiro dos oito romances em que ele aparece.) Já o Marlowe encarnado por Bogart flerta com todas as mulheres que se insinuam em seu caminho e só evita o envolvimento com elas por conta de seu profissionalismo. E acaba, claro, ficando com Bacall no fim – algo que já sabíamos desde os créditos de abertura. É, aliás, o segundo filme protagonizado pelo casal e sua realização se deve em grande parte ao êxito do primeiro, Uma aventura na Martinica, do mesmo Hawks.

Nesta cena significativa, em que o herói passa a lábia numa livreira (Dorothy Malone) para obter informações sobre um suspeito, o diretor introduz um subtexto de sedução e erotismo que estava ausente do livro original:

http://www.youtube.com/watch?v=3t8H07c30io

Outra diferença relevante é que o Marlowe do romance é mais filosófico e aficionado de poesia, enquanto o de Hawks é mais terra a terra. O cineasta, em perfeita parceria com Bogart, acentuou o talento do detetive para as frases cortantes e espirituosas – o que transforma seus diálogos com Bacall em duelos deliciosos, repletos de duplo sentido. Aqui, um trecho da áspera primeira conversa entre os dois: 

http://www.youtube.com/watch?v=VQPz432NvRs

Também o desfecho policial da história é totalmente diferente na tela e no livro, mas isso não convém explicitar aqui. Basta dizer que a morte espetacular é igual nos dois, mas o morto é outro.

A objetividade narrativa do filme (praticamente todas as cenas começam com a chegada de Marlowe a um determinado ambiente e terminam com a imagem dele pensativo, coçando a ponta da orelha) contrasta com o entrecho nebuloso e retorcido, potencializando seu impacto. Como quase sempre em seus trabalhos, Hawks filma de modo direto, com uma composição clássica e a câmera à altura do olho humano.

Pequenas mudanças

Não há grandes diferenças entre a “versão do diretor” realizada por Hawks em 1945 e a que chegou às telas no ano seguinte. Basicamente, o estúdio pediu que houvesse mais cenas em que Bacall contracena com Bogart. Foram rodadas novas sequências, outras foram enxugadas. Mas isso mal se nota ao cotejar as duas edições. Há, por exemplo, a substituição de um encontro por outro de mesmo teor. Na versão original, Bogart e Bacall conversam no escritório do detetive. Na que chegou às telas, o mesmo diálogo é travado no ambiente mais glamouroso de um restaurante chique.

Abismo mesmo é o que há entre o filme de Hawks, em qualquer das duas versões, e o remake de Michael Winner, realizado mais de três décadas depois. Até os grandes Robert Mitchum (no papel de Marlowe) e James Stewart (como o general inválido) parecem perdidos em meio ao acúmulo de equívocos dessa “modernização”.

Ao transpor a ficção de Chandler da Los Angeles dos anos 30 para a Inglaterra dos 70, Winner esvaziou-a de todo sentido, tirou-lhe a seiva histórica e cultural que lhe dava vida. O que ficou foi só o entrecho retorcido, mas com personagens artificiais e chapadas, como a caçula do general, transformada numa vulgar ninfomaníaca, e sua irmã mais velha, convertida numa insossa grã-fina new age (ambas feias, ainda por cima). Com essas barangas, não admira que Marlowe não quisesse nada. E tome violência explícita, sangue em profusão, explicações redundantes – ou seja, tudo aquilo que, por contraste, ilumina o estilo preciso, arguto, elíptico e elegante de Hawks. Fiquemos com o original.

, , , , , , ,