O novo rap brasileiro (parte 1)

Música

02.05.12

Desde o início do século 21, o rap brasileiro anda em constante reinvenção. Ele é a voz de uma classe social inteira. Mas não está trancado nela. Fala sim das dificuldades de quem vive na periferia, mas deixou de ser monotemático.

Se, por um lado, o rap brasileiro desenvolveu uma poética própria e autodidata, por outro, ele se viu refém de um clichê que inventou sem perceber: aquele que associa o hip hop à violência, ao crime organizado, às mazelas da cidade grande. Estes elementos podem ser resumidos no clássico Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, lançado há 15 anos. Foi neste momento que o “mano” entrou no imaginário brasileiro e que o hip hop saiu de sua infância. O rap talvez seja a principal contribuição paulistana para a cultura brasileira nos últimos 30 anos – essa é a idade do rap no Brasil.

A influência é tão forte que entrou até mesmo no Rio de Janeiro, tradicionalmente antagônica a São Paulo, onde o hip hop se misturou com o nativo funk carioca. E não dá para batizar esse momento de rap pós-Racionais, já que o grupo continua na ativa e em evolução. Mas é inegável que Mano Brown e companhia são cruciais para entender o novo rap brasileiro, que já tem mais de dez anos de idade.

Diz o Houaiss. Poesia: arte de compor ou escrever versos. Rap: gênero de música popular, urbana, que consiste numa declamação rápida e ritmada de um texto, com alturas aproximadas. Um está contido no outro. Se é boa poesia ou poesia ruim, deixamos isso aos críticos e estudiosos do assunto. Mas, como dissemos, o século virou e o rap foi junto com ele. E aqui separamos letras de rappers brasileiros contemporâneos, em duas partes: a primeira, abaixo, a segunda, na semana que vem. O que não dá é para apenas torcer o nariz e fingir que não está lá.

Vamos aos primeiros destaques:

Xis – “Os Mano, As Mina”

Xis alcançou uma fama inusitada ao participar do programa C asa dos Artistas, um dos primeiros reality shows do Brasil (a participação causou controvérsia na cena hip hop: um artista ir para a TV aberta era o equivalente a se vender ou a atingir um público ainda maior?). Mas seu maior sucesso, “Os Mano, As Mina” acabou estereotipado pelo título, que levava a gíria paulistana para o resto do Brasil. Todo mundo lembra dos mano e das mina sem conhecer a música em si. O refrão é quase um “Beba Coca Babe Cola” sem formação acadêmica.

“Os mano
Pow
As mina
Pa
Os mano
Pow
As mina
Pa”

Letra completa aqui.

http://www.youtube.com/watch?v=IsTNZd3vDO0
De Menos Crime – “Fogo na bomba”

“E da í, como é que é? FOGO NA BOMBA”

O refrão desse marco do início do século parece ser mera apologia à maconha, mas repare na métrica:

“E
Daí
Como é
Que é?”

Letra completa aqui.

Que parece conversar com “O Capoeira” (“Qué apanhá sordado?” / “O quê?” / “Qué apanhá?”) de Oswald de Andrade, ao mesmo tempo em que os poucos fonemas (ênfase no /k/) fazem uma aliteração quase onomatopaica.

http://www.youtube.com/watch?v=IZdIGqsCdLc
Black Alien & Speed – “Quem que caguetou (Follow Me, Follow Me)”

O lado carioca também usa a aliteração, nesta faixa em que dois ex-integrantes do Planet Hemp licenciaram para uma marca de automóveis na Europa, tra nsformando-a em hit no Velho Continente. Além do refrão (igualmente marcado pelo fonema /k/), o verso “Quem zomba nas ondas do seu som, bom” fazendo “zomba” dançar com “nas ondas” pelo fonema do /z/, formando um eco rimado: “zomba-nasondas”, “som-bom”. Vale lembrar a citação de personagens dos Flintstones em contexto completamente inesperado: “Por causa de um papel ou pedrita nego vira bam bam”, em referência ao uso de drogas. Letra completa aqui.

http://www.youtube.com/watch?v=Dyny8zNwm3c
De Leve – “Largado”

“Essa é dedicada a cada maluco que já foi confundido
Com ladrão, e ficou preso na porta giratória de tão mal vestido
Pra to dos aqueles que só mudam de camisa
Mas niguém percebe porque o pacote são de 3 iguais gg e lisa”

Letra completa aqui.

De Leve é o representante maior de uma segunda safra de rappers cariocas concentrada no coletivo Quinto Andar, que ainda contava com integrantes como Marechal, DJ Castro e parceiros em São Paulo e Belo Horizonte, sendo um dos primeiros grupos de rap a se beneficiar da telepresença da internet. “Largado” é uma crônica, cantada como um samba de breque, reinventando o malandro carioca – e sua poética – para a linguagem do rap.

http://www.youtube.com/watch?v=1AElCWYNhOM

Marcelo D2 – “Vai Vendo”

Mas ninguém fez a conexão entre samba e hip hop melhor que Marcelo D2, principal MC do Planet Hemp. Desde seu primeiro disco solo – Eu tiro é onda, de 1998 -, ele insiste nessa tecla, querendo trazer os rappers da Lapa da virada do século para a Lapa anterior à Segunda Guerra Mundial, sublinhando até a fama de fora da lei do sambista e do rapper, cada um em seu tempo. Seu segundo trabalho, o ótimo À procura da batida perfeita, é inteirinho dedicado a esta conexão, mas a letra de “Vai Vendo” vai da crônica diária já percebida em De Leve (desta vez numa primeira pessoa ególatra) ao tracejo dos itens que quer associado ao seu nome, criando hyperlinks e tags a cada verso:

“Marcelo D2, boné, ou cabelo black,
não sei se o beck me fuma ou sou eu é que fumo o beck
MD2 é a sigla que vem no tag
Não sei se sigo o rap ou é o rap é que me serve
Fruto do Andara criado na Lapa
Do Seu Jorge á Candeias
De Mos Def a Bambaataa
Declaro meu respeito a todos os rimadores
Partideiros, repentistas e claro os versadores
Porque quem versa versa não fica de conversa
E se tem pressa rima melhor porque se expressa
E a minha pressa saca só saca só
Falei que eu vivo o pesadelo do pop
Eu sei que no sam ba eu represento o hip hop”

Letra completa aqui.
http://www.youtube.com/watch?v=vDknShXuuJY

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