Andréia Horta como Elis Regina

Andréia Horta como Elis Regina

O jogo da imitação

No cinema

25.11.16

À saída de uma sessão de Cazuza – O tempo não para (2004), o que mais se ouvia da boca dos espectadores era: “Incrível como o ator (Daniel de Oliveira) parece uma encarnação do Cazuza”. Com Elis, agora, acontece o mesmo. O filme do estreante Hugo Prata baseia toda a sua eficácia na impressionante semelhança física e gestual entre a atriz Andréia Horta e a cantora retratada.

Esse efeito meio mágico, meio macabro, de ressurreição do ídolo defunto por meio da imitação minuciosa de seus traços é ao mesmo tempo o trunfo e a limitação desse tipo de cinebiografia.  No caso de Elis, para realçar a incorporação e não perturbar a idolatria, todo o resto tem que ser simplificado ao extremo, convencional ao extremo, inócuo ao extremo.

Assim, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado) é o cafajeste de almanaque, Miéle (Lucio Mauro Filho) é o malandro boa praça e assim por diante. A relação de Elis com o pai (Zécarlos Machado), que parece começar um tanto complexa, com algumas arestas, logo se resolve num abraço conciliador e pacificador diante do ônibus que o levará de volta de São Paulo a Porto Alegre.

Limpeza de terreno

Outro exemplo de limpeza do terreno para que a operação hagiográfica se consume é a cena em que Elis, ainda casada com Bôscoli, conhece César Camargo Mariano (Caco Ciocler), que tocava piano numa boate. Os três sentam-se à mesma mesa, com outros amigos. O interesse de Elis pelo músico é evidente, mas só recebe o sinal verde para frutificar quando ela olha por cima do ombro e vê o marido flertar ostensivamente com uma beldade junto ao balcão do lugar. Em outra cena, ela liga para Bôscoli de Paris, saudosa, e ele atende o telefone na cama com outra.

Para que Elis apareça cantando numa olimpíada do exército, no auge da ditadura, é preciso que a vejamos antes ser ameaçada numa sala sombria por um militar sinistro. Não é que essas coisas não possam ter acontecido “de verdade”. A questão é que sua organização no filme é feita de modo a justificar a biografada, a manter sem mácula sua conduta moral, política, profissional, familiar etc.

Isso explica também certas omissões. Já que Nara Leão e Chico Buarque são citados no filme, é uma pena que não tenha entrado um episódio interessante: Chico, em início de carreira, mostrou suas músicas para Elis, que não se interessou em gravá-las. Ficou impaciente com a timidez do compositor, que deu então suas canções para Nara. Incidentes desse tipo por certo enriqueceriam dramaticamente o relato, mas tornariam o retrato mais matizado e, quem sabe, problemático.

Talvez essa seja uma armadilha quase inevitável nas cinebiografias de “grandes vultos”. Eles perdem o direito a sua cota humana de inépcia, de covardia, de falha de caráter. Mas é possível algum grau de contradição e desconforto (penso em Clint Eastwood retratando Charlie Parker ou John Huston), de energia destrutiva (o Tim Maia de Mauro Lima é um exemplo). Os realizadores de Elis não quiseram arriscar.

No mais, é um filme que se deixa assistir com prazer. Trata de um período riquíssimo da cultura brasileira, em especial da música popular (bossa nova, jovem guarda, tropicalismo), os atores são todos ótimos, a produção é impecável, com destaque para o som, que resgata e incorpora de modo perfeito as gravações da voz de Elis Regina. Quando essa voz enche o espaço do cinema, todo o resto desaparece, ou antes, reduz-se ao que de fato é, mera ilustração de uma trajetória luminosa.

Creepy

Se Elis simplifica uma realidade humana complexa para torná-la mas palatável ao espectador, ocorre o exato oposto com Creepy, de Kiyoshi Kurosawa (nenhum parentesco com Akira), um filme que parece ter sido feito para desconcertar e perturbar o espectador. Para começar, não é fácil enquadrá-lo num gênero: é policial? Suspense? Terror? Melodrama? É tudo isso misturado, ou alternado, ou embaralhado.

Começa com um prólogo em que Takakura (Hidetoshi Nishijima) tenta convencer um psicopata a soltar uma refém, que ele ameaça com um estilete. O desfecho da cena é desastroso. Há uma elipse temporal e vemos Takakura, agora afastado da polícia e trabalhando como professor, mudar-se com a mulher (Yuko Takeuchi) para uma nova casa. As tentativas de fazer amizade com os vizinhos vão revelando um mundo hostil e misterioso ao seu redor.

Não se pode dizer muita coisa além disso, sob pena de estragar as várias surpresas e reviravoltas do entrecho. Mais que o roteiro engenhoso, entretanto, é a mise-en-scène precisa e inspirada de Kurosawa que introduz o espectador aos poucos – ou aos solavancos – num terreno movediço, limítrofe entre a vigília e o pesadelo, o cotidiano e o paranoico.

Essa habilidade em criar ambientes e situações que parecem projeções da mente doentia de certos personagens é uma das constantes do cinema de Kurosawa pelo menos desde o extraordinário Cura (1997), ainda que ele tenha praticado com êxito gêneros diversos, como o terror científico (Kairo, 2001), o thriller policial (Crimes obscuros, 2006), o melodrama familiar-social (Sonata de Tóquio, 2008) e a fantasia sobrenatural (Para o outro lado, 2015).

Um cinema pulsante, incisivo, do qual o público não sai indiferente, e muito menos ileso.

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