Partideiros, o filme que entra em cartaz no IMS-RJ na próxima quinta-feira, foi realizado em 2006. Renatinho Partideiro, um dos quatro protagonistas, esperava que o documentário lhe desse alguma projeção, mostrasse para mais pessoas o seu enorme talento para o improviso nas rodas de samba.
Pelas conhecidas dificuldades que produções brasileiras de baixo custo têm de ser concluídas e chegar a uma alguma sala de exibição, só agora estreia o projeto idealizado e viabilizado pelo músico Tuninho Galante, com direção de Luiz Guimarães de Castro. Se Partideiros for bem-sucedido, Renatinho não desfrutará dos resultados. Morreu no último sábado, aos 50 anos, de insuficiência renal.
Renato Cardoso Neves era mestre na arte que o compositor e escritor Nei Lopes diz ser a vertente mais nobre do samba. O partido-alto possui linha direta com as mais antigas tradições da cultura afro-brasileira, tendo como base cantos repassados oralmente e a partir dos quais se improvisam novos versos.
Alguns partideiros se tornaram grandes compositores, cristalizando seu talento em canções com início, meio e fim. São os casos de Candeia, Padeirinho, Zeca Pagodinho e o próprio Nei Lopes, para citarmos apenas quatro. Outros ficaram célebres pelos motes que criaram, até hoje repetidos nas rodas de improviso. Aniceto do Império e Xangô da Mangueira são os dois exemplos mais notórios. Marquinhos China – também protagonista de Partideiros – e Tantinho da Mangueira estão aí para manter a linhagem em alta.
Este segundo time era o de Renatinho. Mas, se Marquinhos e Tantinho conseguiram empregos que lhes permitiram ter o samba como ofício alternativo, Renatinho tentou viver de cantar e improvisar. Liderou o Partideiros do Cacique – grupo formado na quadra do bloco Cacique de Ramos, onde Renatinho por muito tempo comandou os pagodes de domingo -, participou de shows com colegas de ofício e ajudou a promover feijoadas na Mangueira (sua escola de coração, ainda que tivesse forte ligação com a Caprichosos de Pilares, que sua família ajudou a fundar).
Nunca conseguiu estabilidade financeira e ficou com fama de não ter estabilidade emocional. Isto porque era partideiro do tipo que não leva desaforo para casa. E ainda tinha sempre uns no bolso. Quando alguém o desafiava numa roda, ele, mesmo não perdendo a categoria dos grandes improvisadores, arrumava um jeito de botar a mãe e a irmã do oponente nos seus versos. Em Partideiros, Marquinhos China diz que, se o clima pesa no samba, chama o Renatinho que ele resolve.
O documentário termina, aliás, com um longo enfrentamento de Renatinho com seu amigo Serginho Procópio (filho de Osmar do Cavaco, acompanhante de Candeia em rodas como as do filme Partido alto, de Leon Hirzsman, que será exibido em dobradinha com Partideiros nos dias 16 e 18). O que começa em pequenas estocadas de Mangueira x Portela vira um quiproquó verbal envolvendo familiares próximos. Eles deixam até de cantar o refrão para, sem perda de tempo, manter o bate-boca aceso. Serginho ainda tenta encerrar três vezes, mas Renatinho não desiste. Essa, digamos, perseverança fez dele uma figura temida no meio – às vezes odiado.
Assistir a Partideiros é testemunhar um pouco da sua absurda capacidade de criar versos sem pensar muito. Convidado por Nei Lopes, ele também deu uma amostra disso numa série recente do Sesc. Transformou seu ofício em sobrenome artístico, mas não em fonte segura de renda. Há poucos meses, um grande amigo dele me disse:
– Renatinho está mal.
Terminou cedo, sem ter sua verve devidamente admirada. Seguiu um caminho artístico complicado, pois se, hoje, os direitos autorais já rendem muito pouco, ele nem os tinha, praticamente. Não sentava para compor, gostava de criar na hora, durante os embates de pagode. Seu nome está aqui e ali em títulos de sambas gravados, mas nada que vá significar herança para seu filho único. Possivelmente, vai virar uma dessas lendas que os chatos e os nem tão chatos assim salivam para falar: “Igual a Renatinho Partideiro eu nunca vi”.
(No documentário há um momento bem indicativo do seu humor, quando ele fala sobre seus parentes: “Há uns que ainda estão vivos, outros nem tanto”.)
Para tentar que não se eternize a fama do porra-louca brigão, é importante ressaltar que Renatinho teve um papel pioneiro e fundamental na história do samba carioca. Em 1995, quando a Lapa estava abandonada, ele e seus amigos Marquinhos de Oswaldo Cruz e Ivan Milanez começaram a fazer rodas na rua, perto dos Arcos. Começaram a atrair gente. Depois, mudaram-se para um lugar coberto. Mais gente veio. Tantas que, a partir de 1998, com o bar Semente, a revitalização da Lapa tomou impulso, sempre com o samba como eixo. Sem a coragem de Renatinho, Marquinhos e Milanez – que pouco ou nada ganharam com o renascimento do bairro – esse processo teria, no mínimo, demorado mais.
No último domingo, Dia das Mães, na presença de sua mãe, seu corpo foi enterrado no cemitério de Inhaúma, no subúrbio do Rio. A despedida foi com samba e versos de improviso.
* Luiz Fernando Vianna é coordenador de internet do IMS.