Cena de O ídolo

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Cena de O ídolo

Trigo e joio na Mostra

No cinema

28.10.16

Na reta final da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, cabe separar o trigo do joio para não perder tempo nem oportunidades. Os comentários a seguir não são críticas, mas impressões provisórias e precárias. Voltaremos oportunamente e com mais detença a algumas dessas obras.

Leste europeu

Comecemos pelos poloneses. A despeito do título infeliz, Estados unidos pelo amor, de Tomasz Wasiliewski, é de uma força tremenda. Ambientada em 1990, quando a Polônia começava a se abrir para o Ocidente depois da queda do Muro de Berlim, a narrativa entrelaça histórias de quatro mulheres que moram no mesmo conjunto habitacional – aqueles caixotes medonhos de concreto que nos acostumamos a ver nos filmes do Leste europeu. Com uma abordagem seca e aquela maneira de entrelaçar o íntimo e o social de que os poloneses são mestres, o filme desloca constantemente os pontos de vista e nos enreda numa teia de pequenos dramas e grandes frustrações, em que o sexo ocupa lugar central.

Um dos planos cinematográficos mais impressionantes dos últimos tempos, que arranca um suspiro de angústia da plateia, ocorre num lago gelado – e mais não digo para não estragar a surpresa.

Ao lado do sombrio Aranha vermelha, já comentado aqui, o filme de Wasiliewski faz jus à grande tradição do cinema polonês, representada lindamente na mostra pelas retrospectivas de Wajda e Kieslowski.

Também do leste da Europa, mais precisamente dos Bálcãs, vem o engenhoso Morte em Sarajevo, de Danis Tanovic, ganhador do grande prêmio do júri e do prêmio da crítica no festival de Berlim. A ação se concentra em algumas horas num único local: o hotel em que se comemorará o centenário do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, que deu origem à Primeira Guerra Mundial em 1914. Mas o foco narrativo se fragmenta: numa suíte, um ator francês ensaia o discurso que fará em nome da União Europeia; na cobertura, uma equipe de TV entrevista pessoas sobre o significado da data; na cozinha, empregados preparam uma ação grevista. O administrador do hotel é acossado por credores, agentes de segurança agitam-se pelos corredores, gângsteres atacam grevistas. O caos da Europa, em especial da sua periferia, ameaça romper a elegância clean do ambiente.

Lav Diaz, caso à parte

Um dos filmes mais fortes da 40ª Mostra infelizmente não tem mais sessão, e é pouco provável que seja exibido depois no país, a não ser que alguma instituição ousada e sem fins comerciais (Instituto Moreira Salles? CineSesc?) resolva arriscar. Estou falando de Canção para um doloroso mistério, do filipino Lav Diaz, com suas oito horas de duração.

Num preto e branco pleno de nuances, feito de planos longos e abertos, em que praticamente inexistem os closes, o diretor entretece dramas de homens e mulheres envolvidos nas guerras de independência das Filipinas, em 1896 e 1897. Personagens históricos, como o Doutor José Rizal e o líder revolucionário Andres Bonifacio, contracenam com pessoas comuns e é nestas últimas que o filme se concentra, detendo-se em seus dilemas morais, seus tormentos físicos e espirituais. Assim como esses personagens parecem frequentemente ser tragados pela natureza (as matas, os rios, o mar), o espectador é levado a uma imersão nessa outra dimensão, nesse outro estado de atenção e experiência que se chama cinema.

Outro título que não tem mais sessão programada, mas talvez fique para a “repescagem” dos últimos dias, é The stopover, das irmãs francesas Muriel e Delphine Coulin. Mais interessante por seus temas do que propriamente por sua construção ou mise-en-scène, o filme acompanha um grupo de soldados franceses que, de volta de uma temporada no Afeganistão, para por uns dias num resort no Chipre para o que se chama de “descompressão”, um misto de relaxamento e terapia de reelaboração da experiência antes de voltar à “vida normal” na França. A ação é narrada do ponto de vista de três mulheres – duas soldadas e uma enfermeira – em meio àquele ambiente fortemente masculino. Suas relações com os outros soldados, com os turistas do hotel e com os cipriotas do entorno são pontos de atrito dos quais as diretoras se servem para falar de questões políticas, culturais e comportamentais.

Interesse antropológico

Como em todas as edições da Mostra, há aqueles filmes que, apesar de limitados ou banais em termos cinematográficos, acabam tendo um interesse histórico ou antropológico. É o caso, por exemplo, do docudrama indiano Para onde, senhora?, da alemã Manuela Bastian, que retrata os percalços de uma jovem, Devki, cujo sonho é ser motorista de táxi em Delhi. A relação de Devki com os pais, com o segundo marido e sua família interiorana, com o caos urbano e as opressivas tradições rurais, tudo isso é informação pura aos nossos olhos ocidentais.

Um caso análogo é o do palestino O ídolo, de Hany Abu-Assad, embora aqui se trate de um melodrama convencional inspirado numa história real, a do cantor Mohammed Assaf (Tawfeek Barhom), que comeu o pão que o diabo amassou para sair de sua Gaza natal, devastada pela guerra e pela miséria, para ganhar o concurso “Arab Idol” e tornar-se um astro pop e herói nacional. A narrativa abusa de todos os clichês do gênero, seguindo à risca a fórmula sofrimento-superação-catarse final. Vale para conhecer um pouco do duro dia a dia em Gaza e nas franjas do mundo árabe, além dos bastidores desse curioso programa pan-arábico nos moldes de “American Idol”. Imagens documentais inseridas oportunamente reforçam a eficácia do drama e aumentam a carga informativa.

Melhor mesmo é quando informação e consistência cinematográfica se juntam, como no documentário Exercícios de memória, da paraguaia Paz Encina, sobre a ditadura de Alfredo Stroessner, uma das mais longas do continente. O eixo da abordagem é a volta dos três filhos do opositor Agustín Goiburú à cidade argentina onde o pai foi exilado e desapareceu em 1976. Esclarecedor e estarrecedor.

No outro extremo, uma decepção é o thriller norte-americano O afogamento, de Bette Gordon, uma das homenageadas da mostra. Pense em um Cabo do medo exangue, sem o talento de Scorsese e sem a energia de De Niro. É mais ou menos isso esse drama de um psicólogo forense (Josh Charles) que salva do afogamento, sem saber, um rapaz que, com seu parecer, ele ajudou a ser preso doze anos antes.

Brasileiros

Sobrou pouco espaço para falar dos brasileiros na Mostra, mas vários deles entrarão em cartaz em breve. Cito alguns que não se deve perder: os documentários Martírio, de Vincent Carelli, Cinema novo, de Eryk Rocha, Vinte anos, de Alice de Andrade, e Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga; o semidocumentário Era o Hotal Cambridge, de Eliane Caffé, e as ficções Elon não acredita na morte, de Ricardo Alves Jr., Redemoinho, de José Luiz Villamarim, Mulher do pai, de Cristiane Oliveira, Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, Beduíno, de Julio Bressane, Deserto, de Guilherme Weber, A cidade do futuro, de Claudio Marques e Marilia Hughes, Antes o tempo não acabava, de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, e O último trago, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti.

Favoritos

Por fim, a quem possa interessar, minha lista pessoal dos favoritos da mostra, alguns dos quais já comentados brevemente aqui: Elle, Canção para um doloroso mistério, Belos sonhos, Paterson, Cinema novo, A garota desconhecida, Morte em Sarajevo, Pitanga, Estados unidos do amor, Cinema novo, Martírio, Aranha vermelha, Era o Hotel Cambridge – e, obviamente, o Decálogo, de Kieslowski, e um punhado de obras-primas de Wajda (Cinzas e diamantes, Terra prometida, O homem de mármore) e de Bellocchio (A China está próxima, Bom dia, noite, Vincere, A bela que dorme). E há ainda Buster Keaton, Jean Vigo, Fellini, Bresson, Renoir. Quem pode querer mais?

 

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