A imaginação literária (I): O cérebro do jaguar

Séries

13.05.13

De hoje a sexta-feira o Blog do IMS publicará A imaginação literária, série de Léo Schlafman dividida em três partes. Hoje, em O cérebro do jaguar, o jornalista e ensaísta comenta as diferenças de intensidade entre uma “leitura de escritor” e uma “leitura comum”.

Vladimir Nabokov e Fiódor Dostoiévski

Vladimir Nabokov e Fiódor Dostoiévski

 

A verdadeira idade de ouro da literatura só surgirá quando as obras se tornarem tão meticulosas na impressão quanto o diário de bordo e tão granuladas no conteúdo quanto o relatório de vigia.

James Fenimore Cooper (prefácio de Corsário Vermelho)

Quando Lautréamont escreveu “Cada vez que leio Shakespeare me parece que estou despedaçando o cérebro de um jaguar”, criou, inconscientemente como alguns de seus melhores achados, um padrão de relação ideal entre leitor e escritor. De fato, todo escritor que se julga tão criador como Shakespeare (praticamente todos) gostaria de ter leitores tão penetrantes como Lautréamont (poucos), dispostos a rachar o cérebro se for o caso para devassar os labirintos profundos do texto.

Mas esta relação, neste teor, é bem menor do que se supõe, entre outras coisas porque o conteúdo dos livros, do ponto de vista do leitor, nem sempre corresponde à expectativa. A imaginação do leitor pode ser mais selvagem que a do autor, além do fato de que o sentido dos livros se transforma com cada leitor, a cada geração. Um mesmo leitor, em fases diferentes da vida – adolescente, adulto ou velho – apresenta obviamente percepções diferentes do mesmo livro. De Dom Casmurro, Anna Kariênina, Dom Quixote, Ilusões perdidas, Madame Bovary, O som e a fúria, Os irmãos Karamázov, Grande sertão: Veredas ou 120 dias de Sodoma, o leitor tira em primeiro lugar uma emoção de vida ou de pensamento, e depois esta emoção se resfria e se dispersa numa infinidade de conclusões possíveis, que variam com cada época e podem se alterar com cada espírito.

Dificilmente se esperaria que leitores comuns dedicassem a vida inteira ao estudo da ficção de Joyce a fim de satisfazer a procura empreendida pelo escritor. Alguns se contentam em receber conclusões mastigadas pelos scholars que se debruçam sobre autores universais como Joyce, Proust, Balzac, Machado de Assis, Faulkner, Dickens – geradores de verdadeiras “indústrias de pesquisa”. Mas é necessário dizer, como salientou Albert Thibaudet (Le liseur de romans), que a obra de arte nada prova. Ela é capacidade, disponibilidade de prova. Mas não prova. É uma utopia.

Muitas vezes os próprios escritores confessam ser leitores displicentes. Nem todos, é claro, abrem o jogo, talvez por pudor, e é comum encontrar em enquetes de jornalismo literário personalidades da vida cultural e do show business informando que estão lendo quatro ou cinco livros ao mesmo tempo – quando se pode deduzir pelo tipo de livros relacionados que na verdade não estão lendo nenhum.

Fernando Pessoa está no primeiro caso. Já vivera metade da vida quando escreveu em O eu profundo: “Abandonei o hábito de ler. Não leio mais, exceto um ou outro jornal, literatura leve e ocasionalmente livros técnicos referentes a algum assunto que possa estar estudando e no qual o simples raciocínio possa ser insuficiente. (…) Nada tenho que aprender e o prazer que se pode colher de livros é de um tipo que se pode substituir com vantagem por aquele que o contato com a natureza e a observação da vida podem diretamente proporcionar-me.” É claro que Fernando Pessoa tinha uma segunda intenção, de ordem poética, para ler menos, quando não pelo fato de que certos textos seus não eram para publicação e vinham carregados de sinceridade típica de leitor, e não de autor. Logo adiante ele diz: “Descobri que a leitura é uma espécie de sonho escravizador. Se devo sonhar, por que não sonhar os meus próprios sonhos?”

Há outros exemplos históricos de diferenciação entre a intensidade da “leitura de escritor” e “leitura comum” – qualquer que seja a interpretação que se possa dar ao conceito da expressão “leitor comum” (sem formação acadêmica, ou simplesmente o leitor que lê sem executar qualquer trabalho). Nietzsche, em Ecce homo, a meio caminho entre argúcia e megalomania, escreveu: “No meu caso, qualquer gênero de leitura é recreação: é, pois, coisa que me afasta de mim mesmo, que me deixa divagar entre ciências e almas estranhas – alguma coisa que eu não levo mais a sério. A leitura me alivia por vezes da minha seriedade.” Declaração estranha, talvez desculpável, levando em consideração que seu autor é o leitor genial que interpretou de maneira tão profunda os trágicos gregos e com eles cimentou a base da própria filosofia.

Num tom mais abaixo, a escritora italiana Natalia Ginzburg confessou: “Tenho o mau hábito de me divertir lendo livros idiotas e vendo filmes idiotas. Muitas vezes leio romancezinhos, porque me agradam as histórias, as tramas, mesmo quando são de péssima qualidade. É um vício. Vejo as séries televisivas, quero saber como vão acabar.” Thibaudet concedeu, ainda no Liseur de romans, que quando o romancista se chama Balzac, Dickens, Flaubert ou Tolstói, não é útil à sua arte que ele leia muitos romances, e “ele lê de fato pouco”. Em todo o caso, ele não lê como o verdadeiro leitor de romances, para revivê-los. A ser verdadeiro isto, seria forçoso admitir que o “leitor comum” tem capacidade de ler livros de maneira mais sincera do que os escritores – o que não deixa de conter um grão de verdade, e de contradição.

Determinados desacertos de avaliação provam que alguns escritores cometem erros de leitura imperdoáveis ao “leitor comum”. Um leitor inteligente como Vladimir Nabokov cometeu tantos erros de avaliação sobre Dostoiévski que parecem até brincadeira. O grande autor de Lolita considerava Dostoiévski medíocre e concedia-lhe apenas “alguns clarões de real originalidade, perdidos entre as estepes da vulgaridade”. Censurava-lhe o mau gosto e o “comércio monótono com seres que sofriam de complexos pré-freudianos”, considerava-o desprovido de senso de humor, dono de “eloquência vulgar de tribuno de pacotilha” e, enfim, achava Manon Lescaut “melhor escrito e mais comovente do que Crime e castigo“.

* Léo Schlafman, jornalista e ensaísta, é autor de A verdade e a mentira (novos caminhos para a literatura), publicado pela Civilização Brasileira.

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