Entre os trabalhos que Francisco Rebolo realiza durante a sua única temporada na Europa, de 1955 a 1957, Paisagem de Termenilo é exemplar dos impasses que o artista enfrenta àquela altura em sua obra, com a combinação de recursos ilusionistas e soluções geométricas para a representação de paisagens, casarios e fachadas. Por um lado, essa pintura feita na Itália, em 1956, insinua um escorço perspectivo, com os edifícios e os níveis do solo em diagonal, na metade inferior, onde assoma a volumetria da composição. Por outro, a organização das figuras em torno do branco da neve, predominante no centro, valoriza elementos de fachadas – porta, arco, janelas, empenas, teto, balcão, colunas e frisos, amarelos, verdes, vermelhos, pretos e cinza -, quase como se cada parte fosse pintada em separado, uma a uma, até a justaposição em pequenos esquemas de montagem e desmontagem. O quadro também preserva as manchas do cromatismo rebaixado que contribuíram para tornar o seu autor relativamente conhecido a partir da década de 1940, em especial nos tons terrosos da parte superior. Mas, ao mesmo tempo, o enquadramento fechado (em que não cabe inteira a casa vermelha, à esquerda) aproxima a figuração da superfície, como resultado de um ponto de vista que, se não adota a frontalidade franca, difere muito da maioria das paisagens precedentes de Rebolo, recuadas, tomadas do alto e a distância, com certa indeterminação nos contornos.
Na obra do artista, a Paisagem de Termenilo representa já um desdobramento de suas primeiras investidas na geometrização das formas, pouco antes da viagem à Europa, e cuja sequência, ainda na Itália, entre 1956 e 1957, se dá por pinturas de superfície rasa, com a ordenação frontal de uns poucos elementos estruturais. Antes disso, Rebolo vinha de uma experiência compartilhada com pintores, como ele, autodidatas, com ou sem treinamento acadêmico, frequentadores do antigo Palacete Santa Helena, na praça da Sé, em São Paulo, entre 1934 e 1940. Chamada mais tarde pela designação atribuída de “Grupo Santa Helena”, a turma que reunia Mario Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Clóvis Graciano e Alfredo Volpi, entre outros, alugava salas do edifício para utilizá-las, com regularidade variada, como ateliês, para participar de sessões de modelo vivo ou como escritório para tocar as suas atividades de pintores-decoradores. Fora dali, esses artistas se encontravam em duplas ou em pequenos grupos para pintar aos domingos en plein air, nos arredores da cidade. Não se tratava de um agrupamento formal rígido. Mesmo assim, é possível identificar afinidades entre as várias produções nesse período, pela recorrência de cenas suburbanas e paisagens do arrabalde paulistano, pelos meios-tons de fatura fosca e a mescla de influxos da pintura francesa impressionista, de Cézanne, do Novecento italiano e de fórmulas acadêmicas.
Até o final da década de 1940, a trajetória de Rebolo também se constitui de paisagens, retratos e naturezas-mortas, de exercícios de nu, de cenas de costume, em ambientes modestos, a envolver trabalhadores. Em geral, com uma percepção naturalista e um evidente apreço pela técnica, decorrente, provavelmente, dos conhecimentos de artesão. São comuns para o artista, nessa época, as pinturas que se constituem de manchas de cor, o desenho mais ou menos duro e as pinceladas aparentes. Em determinados momentos, numa mesma tela, áreas com matéria espessa convivem com outras preenchidas por tinta rala, a explorar texturas e tonalidades baixas. No âmbito do modernismo brasileiro, a produção inicial do pintor pode ser pensada como parte de um “modernismo mitigado”: uma prática da arte alicerçada mais na consciência artesanal do ofício do que em renovações ou rupturas estéticas; interessada no legado histórico da pintura europeia, inclusive nos gêneros pictóricos tradicionais, tanto quanto em aspectos da vida suburbana da São Paulo naquele período. Agora, algumas pistas sobre as motivações de Rebolo para aproximar os objetos de sua figuração a formas geométricas, no começo da década de 1950, podem estar relacionadas à voga abstracionista que se instaura junto com a I Bienal de São Paulo, em 1951, da qual participa, e, em especial, com os caminhos divisados na obra do amigo Alfredo Volpi no final dos anos de 1940, quando este passara a converter os seus casarios em paralelogramos, em “motivos” esquemáticos e gestos que se dão a ver, para compor a estruturação linear e rítmica do plano, com um tratamento bidimensional do espaço.
Um trabalho que assinala bem a incursão de Rebolo por formas geometrizadas – e de maneira curiosa, por conta das circunstâncias em que foi produzido – é Casario, de 1954, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Trata-se do quadro que levou Rebolo à Europa, “primeiro prêmio de pintura” – correspondente ao “prêmio de viagem ao exterior” – na edição daquele ano do Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, apelidado, por sua vez, de “Salão Preto e Branco”, em razão de os artistas participantes apresentarem na exposição obras com base somente nessas duas cores, em protesto contra a má qualidade das tintas brasileiras e as altas taxas incidentes sobre o preço das tintas importadas, consideradas “artigos de luxo” pelo governo de Getúlio Vargas (1950-1954). Para a ocasião, Rebolo então substitui a paleta contida, de luminosidade difusa, por outra de alto-contraste. Em vez da primazia de ocres, azuis e verdes esbatidos, variações entre branco, preto e cinza dispõem-se com a alternância de claro e escuro, luzes e sombras, nas faces de polígonos que figuram um conjunto de casas sem portas nem janelas – à exceção de uma grade na mais alta delas, à direita – sob um céu breu. Em comparação com Casario, cuja inclinação metafísica é atípica na obra do artista, Paisagem de Termenilo também faz uma transcrição simplificada da arquitetura, porém, em superfície instável, com transparências e pouca tinta, sobretudo, nas laterais superiores, conferindo à pintura um aspecto de desgaste ou de inacabada.
Em pelo menos outras duas obras produzidas em cidades italianas, Termenilo (1956) e Roma (1957), ambas pertencentes a coleções particulares, Rebolo experimenta – salvo engano, pela primeira vez de modo tão obstinado – a condição de frontalidade do plano, com um jogo raso de figura e fundo. Aqui, um pouco como o Volpi da virada para aquela década, o artista comprime a volumetria de fachadas, fazendo que ocupem quase toda a área do suporte, e elimina diferenciações entre linha e cor, forma e matéria. Nessas duas pinturas, obtém-se a unidade entre os diversos elementos fisionômicos da arquitetura – de novo, portas, janelas, frisos etc. – por passagens cromáticas mais serenas, pela aparência lavada da superfície e pelo rebatimento das formas. O surgimento das coisas se torna moroso, estiradas em tinta fina, magra, em gestos hesitantes que infundem vibração luminosa em cada região de cor, nunca regular, e que flagram a forma em situações variáveis, mais e menos suscetíveis. Tais características reforçam, ainda, as aproximações entre este momento da carreira de Rebolo e a obra de Volpi, pela concepção de uma poética que teria entre as suas questões o “estatuto do visível”, a lançar-se em investigações sobre os limites de consistência que as formas podem assumir e os tipos de exposição a que elas podem se entregar.
A empresa dessa síntese, capaz de submeter ao despojo uma suposta integridade do plano, no entanto, esmorece rápido em Rebolo. Pouco depois de voltar para o Brasil, o artista inicia uma série de trabalhos com matéria encorpada, pastosa, distribuída no suporte por movimentos curtos e expressivos de espátula, a fim de determinar uma hierarquização de planos contrastante com a sutileza tonal que parecia em curso. Ao mesmo tempo, entre 1959 e 1962, dedica-se à xilogravura, sem grandes desenvolvimentos. O fato é que o fôlego especulativo de parte de suas realizações na Europa não resiste à qualidade irregular da obra que concluiu. Ao longo de quatro décadas e meia, as oscilações nos resultados parecem pender tanto para articulações entre registros visuais diferentes – a exemplo da conformação dubitativa da Paisagem de Termenilo – como para nostalgias do impressionismo. Assim, o ânimo de arriscar os recessos de uma pintura delgada (de longa depuração) no sistema bidimensional (pela redução geométrica da paisagem, para não perder a experiência direta do mundo) resta entre as possibilidades encetadas nos primeiros 25 anos de sua produção, sem que o artista lograsse levá-lo às últimas consequências.
* José Augusto Ribeiro é mestre em teoria, história e crítica de arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e atualmente trabalha como curador de artes visuais do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Trabalhou, entre 2006 e 2009, como pesquisador do projeto editorial Arte no Brasil: textos críticos do século XX, sob coordenação do Museum of Fine Arts – Houston (EUA). Tem ensaios publicados em livros e catálogos e já colaborou para as revistas Número, Bravo!, Trópico, Artnexus (Colômbia) e Arte y Parte (Espanha).