Espaço Angélica Freitas

Correspondência

13.08.12

Tem início neste post uma conversa entre os poetas Fabrício Corsaletti e Angélica Freitas, que nos próximos dois meses trocarão correspondência no blog.

Clique aqui para ver a carta seguinte.

Querida Angie,

Saudade!

Tudo bem por aí? E onde é aí? Pelotas? Salvador? Buenos Aires? Onde você anda? Manda notícias.

Por aqui tudo tranquilo. Te contei que mudei de casa, certo? Estou morando na Bela Cintra ? perto do centro, colado na Augusta e a dez minutos da Paulista. Faço tudo a pé. Só pra ir pra análise é que pego metrô. Tô adorando. A quantidade de bares à minha volta é assustadora. Segundo o Paulinho (Werneck), só perde pro porto de Hamburgo. E tem também os cinemas, embora eu esteja vendo poucos filmes. Ando sem paciência pra ficar parado duas horas numa sala escura ou em outro lugar qualquer. Na semana passada saí no meio do Para Roma, com amor, do Woody Allen. Nem sei se era tão ruim. Mas não entrei no clima.

A verdade é que estou tentando me concentrar no livro novo. De contos. Escrevi cinco. Quero chegar a dez ou doze. Dos dois últimos, escritos esse ano, eu gosto. Estão prontos e têm alguma força. Mas os três primeiros, que escrevi entre 2009 e 2010, não sei não se algum dia vão parar de pé. Estão cheios de erros de tom. Algumas frases me envergonham até o osso. Parece um pesadelo realizado. Parece que estou pelado no meio do Teatro Oficina enquanto o Zé Celso e o resto dos atores estão vestidos a rigor pro baile da Miss Turismo Regional 1993 a ser realizado no Nosso Clube de Santo Anastácio. Tá louco, mano. Já tive a minha cota de ridículo nessa vida. Só quero ficar na minha e fazer as coisas do meu jeito. Seres humanos têm me causado pânico. Talvez sejam ainda os efeitos da Flip.

Mas voltando. Criei coragem e passei várias manhãs reescrevendo os contos. No fim da segunda semana eu estava mais deprimido que a Edith Piaf, com vontade de deletar tudo e nunca mais escrever uma linha de prosa. Acontece que dois desses textos já foram publicados, um numa antologia sobre animais de estimação (falei de um cachorro) e outro num livro sobre circos (contei a história de uma trapezista adolescente que passou por Anastácio quando eu tinha doze anos e por quem me apaixonei e tentei conhecer mas um palhaço me expulsou do acampamento no momento em que encontrei o trailler onde a família dela dormia etc.). Por isso, parte da minha determinação em escrever esse livro é uma estratégia pra me obrigar a melhorar esses contos. O que é, concordo, uma motivação mesquinha, mas que não consegui superar. Em todo caso não é a única, acredite.

Dear Angie, você precisa vir pra São Paulo logo. Tô com saudade dos nossos cafés da manhã. E na casa nova tem uma mesa grande, o dobro daquela da Oscar Freire. Vou encher de pães, frutas e geléia de sei lá o quê quando você vier. Podemos chamar o Noah e o Calixto pra irem com a gente encher a cara no Kintarô. O Betito e a Gô também. E a Mari, claro.

Mudando de assunto: quando um útero é do tamanho de um punho (vai ser esse mesmo o título?) chega às livrarias? Quero muito ver como ficou. Você incluiu o poema do “eu durmo comigo”? Seja uma boa amiga e diga que sim.

Agora escuta essa. Meses atrás eu estava lendo aquele Guia do Bob Dylan e, num trecho dedicado ao Modern Times, o cara dizia que quando o álbum saiu, em 2006, acusaram o Dylan de plagiar um poeta do século XIX chamado Henry Timrod. Escrevi pro Paulo Henriques Britto, que sabe tudo de literatura em língua inglesa e também gosta de Dylan, e perguntei se ele conhecia o tal Timrod. Ele disse que não. Aí fiquei curioso e encomendei o livro na Cultura. Finalmente chegou. Folheei algumas páginas, com tantos versos do Modern Times na cabeça quanto minha ex-boa memória podia suportar, e logo de cara topei com a expressão “mountains of the past” num soneto, que copio abaixo. Filho da puta. Lembro bem a emoção que senti quando ouvi “mountains of the past” em “Beyond Here Lies Nothin'”. (Que é do Together Through Life, de 2009, e não do Modern Times. Será que o Dylan leu esse poeta durante anos?) O passado como uma montanha ? sem possibilidade de ser ignorado, encoberto ou jogado fora. Mas que pelo menos está lá, montanhosamente, sem se mexer demais. Achei trágico e libertador ao mesmo tempo. E agora descubro que é do Henry Timrod. Bom, ainda bem que o Dylan botou a expressão numa música dele, caso contrário eu nunca a conheceria.

Vou ter que parar por aqui. A tendinite tá apitando. Junto com a panela de pressão, pois tô fazendo uma sopa. (Que vai ter que durar a semana inteira, porque a verba tá curta).

E antes que eu me esqueça. Lembra que em Porto Alegre (em maio? abril?) eu disse que minha biblioteca iria se chamar Espaço Angélica Freitas e que eu mandaria fazer uma placa pra colocar sobre a porta? Eu estava bêbado e o pessoal da Lancheria do Parque não me levou a sério. Então olha a foto.

Beijo, seu

Fabrício

PS: o poema do Timrod:

SONNET: LIFE EVER SEEMS

Life ever seems as from its present site
It aimed to lure us. Mountains of the past
It melts, with all their crags and caverns vast,
Into a purple cloud! Across the night
Which hides what is to be, it shoots a light
All rosy with the yet unrisen dawn.
Not the near daisies, but yon distant height
Attracts us, lying on this emereal lawn.
And always, be the landscape what it may ?
Blue, misty hill or sweep of glimmering plain ?
It is the eye’s endeavor still to gain
The fine, faint limit of the bounding day.
God, haply, in this mystic mode, would fain
Hint of a happier home, far, far away!

, , , , ,