Alguns críticos brasileiros, aparentemente acometidos por um estranho e perigoso automatismo, apressaram-se em relegar Os penetras, de Andrucha Waddington, à vala comum do besteirol, ao lado de coisas como Até que a sorte nos separe e o programa televisivo Zorra total. Eu me pergunto se eles viram o mesmo filme que eu.
O que eu vi foi uma saborosa sátira de costumes, uma atualização bastante eficaz de um veio fecundo da nossa cultura, a comédia de malandragem, que vem desde Memórias de um sargento de milícias, passa pela chanchada, pelos filmes de Hugo Carvana, por telenovelas como Beto Rockfeller e até, estendendo um pouco o conceito, por clássicos como Macunaíma e O auto da Compadecida. No plano internacional, o gênero produziu pérolas como Aquele que sabe viver (Dino Risi, 1962) e Os safados (Frank Oz, 1988).
O malandro é o pícaro atualizado e aclimatado ao Brasil, o sujeito que vive de golpes e artimanhas, que assume identidades falsas e simula pertencer a uma classe mais elevada que a sua.
Pícaro brasileiro
É exatamente isso o que faz o jovem carioca Marco Polo (Marcelo Adnet). Coadjuvado por um vigarista veterano (Stepan Nercessian) e por um bobalhão recém-chegado do interior (Eduardo Sterblich), ele arranca dinheiro de turistas incautos, passa a lábia nas garotas mais belas e tenta penetrar nas festas de fim de ano mais grã-finas e exclusivas do Rio de Janeiro.
http://www.youtube.com/watch?v=KR6ZAprpTqE
A ação, rocambolesca como costuma acontecer nesses casos, concentra-se nos poucos dias em torno de um Réveillon. Há uma recepção chique no Palácio do Catete e depois, no dia 31 propriamente dito, uma festa na casa de um milionário colunável, e é em torno desses dois eventos que se organizam as confusões do enredo.
O humor, como já se disse aqui, é algo muito subjetivo. Ou seja, pode-se não achar graça nenhuma nos quiproquós de Os penetras. Mas não se pode dizer que seja um filme raso, desprovido de camadas interessantes de significação.
Proponho aqui uma linha possível de leitura. Todo mundo concentrou a atenção no par de jovens comediantes protagonistas (Adnet e Sterblich, aliás excelentes), mas a escolha dos coadjuvantes é, a meu ver, uma chave para apreciar melhor o filme. Stepan Nercessian, sobretudo quando ostenta um bigode postiço na recepção no Catete, lembra irresistivelmente o grande cômico Zé Trindade, malandro típico da chanchada, como se pode ver neste trecho de Entrei de gaiato (J. B. Tanko, 1959), em que ele contracena com Costinha e Chico Anysio:
http://www.youtube.com/watch?v=J53blhBOpvI
A breve aparição de Andrea Beltrão nos remete à saudosa série televisiva Armação ilimitada, bem como a ponta de Kate Lyra nos lembra a eterna beldade estrangeira para quem “brasileiro é tão bonzinho”.
Mais significativa ainda é a escalação de dois outros malandros paradigmáticos, Miele e Luiz Gustavo (o Beto Rockfeller, penetra dos penetras), o primeiro como um grande empresário, o segundo como latifundiário do Mato Grosso, ambos envolvidos em golpes gigantescos. Malandros “com contrato, com gravata e capital”, como cantou Chico Buarque.
Invasão de terreno
Eis o embate central de Os penetras: os pequenos vigaristas tentando invadir um baile dominado por grandes penetras institucionalizados, que estão no poder de uma maneira ou de outra desde as capitanias hereditárias.
É nesse ponto que o filme de Andrucha se sintoniza perfeitamente com os tempos que correm, de emergência de uma nova classe média, de “invasão”, por um novo contingente, de áreas que até ontem eram consideradas exclusivas dos happy few. Esse subtexto “político” é sublinhado na trilha sonora pelo rock premonitório do Ultraje a Rigor, Nós vamos invadir sua praia.
Outro achado interessante foi o de fazer do jovem matuto encarnado por Sterblich o sósia de um grande astro internacional, reciclando assim para a era das celebridades um antigo clichê cômico (pelo menos desde o Chaplin de The idle class), o da troca de identidade. Explicita-se assim o que há de carnavalesco, de lógica da fantasia, nesse tipo de comédia.
Se há objeções legítimas a fazer a Os penetras, a meu ver elas são basicamente duas. Primeira: teria sido mais consequente, tanto do ponto de vista político como moral, deixar claro que Adnet e seus comparsas são os malandros otários, que perdem no fim, pois os “que nunca se dão mal” são os outros, os com retrato na coluna social. Mas o filme termina literalmente no ar, como que anunciando uma provável continuação.
A outra limitação, a meu ver, é de linguagem. Embora Os penetras seja “bem filmado”, dentro do padrão de qualidade da Conspiração Filmes, seu humor depende basicamente dos diálogos e do talento dos atores, e não de gags visuais, de um ritmo e de uma encenação especificamente cinematográficos – com exceções notáveis, como a alucinada cena do carro de polícia na contramão, deliciosa paródia das cenas de perseguição do cinema americano. A sequência toda, aliás, tem uma qualidade alucinógena sugerida pela droga tomada inadvertidamente por todos, fardados e à paisana.
Seja como for, é um filme que está a anos-luz de distância do histérico e estéril besteirol que invadiu nossas telas.