Oscar Niemeyer: como se fosse fácil

Arquitetura

06.12.12

Segundo a tese já clássica de Rodrigo Naves¹, um dos traços fundamentais da produção artística brasileira encontra-se na sua “relutância formal”. A “forma difícil” a que o crítico se refere é relacionada a uma espécie de “travo” característico do ambiente social brasileiro, a ponto de ser incorporado pelos nossos maiores artistas, traduzindo-se na “timidez formal” de suas obras. Essa chave permite ao autor pôr em contato poéticas tão distintas quanto as de Debret, Lasar Segall, Guignard, Volpi e Amilcar de Castro, numa das leituras mais originais – em todos os sentidos – da arte brasileira. Que lugar caberia a Oscar Niemeyer nessa leitura? Dificilmente outro senão o enfrentamento até hoje mais veemente dos problemas implicados na constituição da nossa visualidade. Em sua obra, encontramos o “travo” localizado por Naves de maneira invertida, convertido numa descompressão violenta, que em todo caso só confirma sua grandeza e singularidade.

Não seria descabido, afinal, aproximar Volpi de Lucio Costa, ou Amilcar de Castro de Affonso Eduardo Reidy. Mas onde buscar alguma correspondência com Niemeyer, se tudo na sua obra parece contrariar a interioridade de Volpi, a economia de Amilcar, a garoa fina de Guignard, o drama de Iberê Camargo, o mundo cheio de sombras de Goeldi? Na verdade, mais se considera a “dificuldade de forma” desses artistas, e mais a potência formal de Niemeyer se afirma, na sua problemática singularidade.

Último representante da geração dos chamados “grandes mestres” da arquitetura moderna (que inclui Le Corbusier, Mies van der Rohe, Walter Gropius e Lucio Costa), Niemeyer é também o arquiteto que mais colocou problemas para a arquitetura moderna. E isso explica por que, no quadro da arquitetura mundial, sua obra se mantém igualmente única; tendo contribuído de maneira decisiva para forçar os limites da arquitetura moderna, introduziu ao mesmo tempo um grau de problema que até hoje desafia os críticos.

Moderna ao extremo, a arquitetura de Niemeyer nunca se encaixa muito bem em nenhuma definição de moderno. Pudera. Ela vira do avesso a noção de funcionalismo, dá as costas a princípios universalistas e passa ao largo de qualquer demanda por rigor e método. Em sua liberdade para muitos excessiva, ela parece se nutrir, paradoxalmente, da mesma indefinição a que se refere Rodrigo Naves. Há um grau de desenvoltura em projetos como a Casa das Canoas, por exemplo, que seria impensável fora do quadro cultural brasileiros dos anos 1940-50, em suas possibilidades e ambiguidades (basta lembrar que foi justamente na década de 1950, quando o idealismo moderno começou a ser interrogado mais profundamente, que construímos Brasília – emblema máximo das contradições e complexidades implicadas na nossa versão de modernidade).

O palácio do Itamaraty (Marcel Gautherot/Acervo IMS)

Mas há muitas outras dimensões decisivas na obra de Niemeyer, certamente, e uma delas está na maneira como encontram-se aí apaziguados um vigoroso impulso emancipatório, essencialmente moderno, e um certo quadro de referências radicados na formação acadêmica do arquiteto. Princípios de raiz clássica como unidade e proporcionalidade são invocados em projetos como a Pampulha (anos 40), a sede da Mondadori (final anos 60) ou o Memorial da América Latina (anos 80), por exemplo, nos quais a fragmentação do programa em volumes autônomos porém articulados contribui para engendrar um todo que aspira, por meio de relações harmônicas, manter em equilíbrio partes de pesos desiguais.

Não por acaso, o procedimento projetual de Niemeyer resulta, no mais das vezes, numa forma fechada em si mesma, ideação de uma totalidade estável, à qual não são previstas intervenções posteriores. Ou onde qualquer alteração do todo, seja por adição ou subtração de partes, tende a se caracterizar como uma mutilação ou deformação (conforme se pode observar em várias alterações feitas posteriormente pelo próprio arquiteto em suas obras, às custas da integridade do projeto original).

Esse caráter fechado se manifesta também em soluções destinadas à repetição, como os projetos em pré-fabricados desenvolvidos no âmbito do Ceplan/Centro de Planejamento da Universidade de Brasília, no começo da década de 1960. E mesmo se tomarmos aqueles projetos que se definem por uma seqüência de pórticos estruturais, como a Fábrica da Duchen (1950) ou o Hotel Tijuco (1951), onde a repetição de uma mesma peça estrutural parece compensar a não-reprodutibilidade própria da arquitetura de Niemeyer, veremos que ali também permanece latente o gesto do arquiteto, oferecido à admiração de um sujeito heterônomo.

O privilégio dado à apreensão do todo sobre as partes ajuda, por sua vez, a colocar no registro correto a manifesta desconsideração do arquiteto para com detalhes, articulações e acabamentos em geral. O fato de que arquitetos como Walter Gropius, em seu rigor nórdico, tenham reagido negativamente a este aspecto tem sua razão de ser. Mas nem por isso deve-se ver aí um mero desleixo. Concebida como uma “caixa em perspectiva”, a obra de Niemeyer exige um certo distanciamento, do qual depende, afinal, o prazer do olhar e a satisfação do fruidor (daí o recurso recorrente a rampas e espelhos d’água, a fixar um percurso que define pontos de vista que com frequencia tendem à frontalidade). É o contorno, e não o detalhe, que conta antes de tudo, e é aí que está, ao mesmo tempo, o ponto mais forte e crítico dessa arquitetura, tão decididamente recortada do meio em que se insere.

Segundo Sophia Telles, autora daquela que é provavelmente a análise até hoje mais profunda do procedimento projetual do arquiteto², o espaço de Niemeyer está para o “espaço do desenho” assim como o espaço de Brancusi está para “o espaço do objeto construído”. E isso porque a forma nasce, em Niemeyer, no espaço bidimensional do papel, sendo definida por seu contorno: a linha chama atenção para sua completude, enquanto o traço contínuo permanece associado à maleabilidade própria do concreto. Ao mesmo tempo, a própria disposição da linha sobre o papel – e a escala reduzida com a qual costuma iniciar seus projetos – confirmam o raciocínio linear do arquiteto, cuja concepção projetual está sempre a exigir um vazio, um espaço de respiração equivalente àquela espécie de passe-partout definido pelo branco do papel em torno do desenho.

Debitário em grande parte de Le Corbusier, o desenho de Niemeyer se desenvolve sobre um meio que carece de formalização, levando a um grau extremo, e talvez último, uma concepção de forma – e de arquitetura – como criação individual, livre e desenfreada, que submete tudo aos seus desígnios e ignora qualquer dificuldade, seja de ordem técnica, econômica ou social. Toda a tensão do cálculo, todo o esforço construtivo, todo o perigo inerente à arquitetura, tudo parece irrelevante quando Niemeyer desenha. Basta um risco a correr sobre o papel em branco, longe do erro e da hesitação. Como se fosse fácil.

* Ana Luiza Nobre é arquiteta e historiadora, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

Veja também:

Fotos de Marcel Gautherot das obras de Niemeyer

Debate sobre a obra de Oscar Niemeyer realizado pelos críticos Guilherme Wisnik e Pedro Fiori Arantes para a seção Desentendimento, da revista serrote

Ensaio de Adrián Gorelik na serrote #10 intitulado “Sobre a impossibilidade de (pensar) Brasília”

“O destino de Brasília”, ensaio do arquiteto britânico Kenneth Frampton

Cidade-bandeira, texto de Heloisa Espada sobre as diferentes visões acerca de Brasília

NOTAS:

¹ Naves, Rodrigo. A Forma Difícil. São Paulo, Ática, 1997.

² Telles, Sophia.  Arquitetura moderna no Brasil. O desenho da superfície. São Paulo, FFLCH-USP, 1988.

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