A violência autorizada – quatro perguntas para Maria Rita Kehl

Quatro perguntas

09.09.14

A psicanalista Maria Rita Kehl é uma das conferencistas de “Mutações – Fontes passionais da violência”, novo ciclo organizado por Adauto Novaes.  Deu a palestra “Contra a lei do mais forte” na Biblioteca Nacional, no Rio, neste dia 8, e no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, no dia 10.

Integrante da Comissão Nacional da Verdade, tem colhido relatos de camponeses de torturas sofridas durante a ditadura militar. Segundo ela, com a autorização dada pelo Estado para a prática de tortura, tornou-se impossível – e se torna ainda hoje nas torturas por policiais – qualquer controle.

Nesta entrevista dada ao Blog do IMS pouco antes da conferência do Rio, Maria Rita ainda aponta para o problema de a ditadura militar ter acabado no Brasil sem punições nem sequer um julgamento simbólico. Triunfou a cordialidade, no sentido dado por Sérgio Buarque de Holanda. 

 

1. Com a Primeira Guerra Mundial, há cem anos, a violência ganhou o impulso da técnica, da ciência. Hoje, a tecnologia permite que aviões atinjam prédios e gargantas sejam cortadas diante das câmeras. É uma era de espetacularização da violência?

Sim. Eu marquei muito, mentalmente, a intuição do Walter Benjamin de que a adesão das populações europeias à Primeira Guerra era uma paixão pela tecnologia. Fico pensando o tipo de fascínio que a tecnologia causa e o tipo de alienação que produz. É como se ela tivesse poder em si, mas, na verdade, só tem o poder que nós lhe atribuímos. Não consigo entender esse nexo, que parece claro, entre tecnologia e violência. Não estou falando de tecnologia feita para a guerra. Estou pensando no inconsciente, no que acontece de querer ver aquele negócio explodir. É aquela fórmula do superego, do Lacan: o superego não trabalha só para nos proibir de fazer coisas. O trabalho sujo, obscuro do superego é fazer tudo o que for possível para nos obrigar a gozar um pouco mais. O [Slavoj] Žižek resumiu isso de forma brilhante: se você pode, você deve. Ou seja, se existe um instrumento capaz de matar milhões de longe, por que a gente não vai usar? Existe uma paixão do superego em nome da moral, da lei, que faz com que as pessoas entrem numa guerra mesmo sofrendo com isso. E existe essa paixão meio fanática pela tecnologia: vamos ver esse negócio explodir.

2. Apesar dos séculos de escravidão, ainda persiste, no Brasil, o mito do povo pacífico. Há um fundo de verdade nele ou somos extremamente violentos?

Somos uma sociedade legitimamente afetuosa. Todo mundo a quem trato bem me trata bem de volta. Vivi um pouco nos Estados Unidos e na França, e lá não é assim. Com a ideia do “homem cordial”, Sérgio Buarque sacou uma coisa fundamental, que é a relação entre a cordialidade e a violência da dominação. É dominar com o coração, não no cabo do chicote. Joaquim Nabuco percebeu, em O abolicionismo, que isso perverteria a elite brasileira por muito tempo. Ela realmente fica ofendida quando é cobrada, por exemplo, pelos direitos de seus empregados. Quanto mais inconsciente, mais profundo, mais ferido em sua dignidade fica o “senhor de engenho”, como diz o Mano Brown.

O que talvez a escravidão tenha prolongado é o seguinte: o corpo do outro não é tabu. Tem o lado da sexualidade, de o cara no carnaval pôr a mão no meu ombro pra dançar. Essa facilidade corporal é sedutora para todos. Mas o corpo do outro, negro, pobre, não é sagrado. E não teve um movimento negro forte no Brasil como nos Estados Unidos. Não sei se a cordialidade atinge a tal ponto as coisas no Brasil que o movimento negro nunca deixou de ser pequeno.

3. Como integrante da Comissão Nacional da Verdade, você se sente convivendo com a “banalidade do mal”?

Por um lado, claro que é banalidade do mal. Lacan dizia: se existe um mal absoluto, é aquele praticado em nome de um bem absoluto. Havia agentes do Estado convencidos de que lidavam com terroristas. Mas, se abriu a porteira, passa boi, passa boiada. Se há a autorização da tortura, pode tudo. 

4. Sua conferência no ciclo “Mutações – Fontes passionais da violência” parte de Totem e tabu, a obra de Freud que está completando cem anos. Para você, há, na morte do pai pelos filhos de que Freud trata, uma violência legítima?

Esse parricídio é condição da civilização. O pai é a barbárie, a lei do mais forte. Oprime todos os filhos, tem direito a todas as mulheres. O ato de um assassinato sempre é bárbaro, mas, no mito freudiano, ele é requisito da civilização. Depois que matam o pai, os filhos ficam preocupados: quem será o próximo? Criam, então, o totem representando o pai e criam a lei simbólica, que é o tabu do incesto. É como a passagem da monarquia absolutista para a democracia, na qual cabeças foram cortadas.

Aqui no Brasil a ditadura acabou tão branda… Não houve julgamento simbólico, escracho, abjuração pública. Os mandantes morreram de pijama de frente para o mar. Como no poema do T.S. Eliot, tudo não terminou com um estrondo, mas com um suspiro. Nas relações patronais, aos poucos a lei vai se impondo. Na política, não.

A Comissão da Verdade está discutindo incluir nas recomendações a revisão da lei da anistia. É o que podemos fazer. 

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