Deus, política e óculos escuros

Correspondência

28.01.11

Durantes dois meses, o escritor Daniel Galera e o editor André Conti trocam cartas semanalmente neste espaço.

André,

O recado foi dado. Será o bode.

Gosto muito de conhecer histórias e reminiscências do teu passado de militante comunista. A política nunca fez parte da minha identidade. Tenho lá minhas convicções, leio noticiário político, penso antes de votar e tudo mais, mas essa coisa de ser de direita ou de esquerda nunca fez sentido pra mim, desde cedo a política sempre me pareceu um espetáculo de fisiologismo em que valia mais a pena recompensar o valor particular de certos candidatos ou propostas do que um partido ou uma ideologia.

É a mesma coisa com Deus. Quando eu era criança, nunca conseguia entender exatamente do que as pessoas estavam falando, e é assim até hoje. Estudei alguns anos num colégio judaico de São Paulo até me dar conta de que talvez fosse uma boa ideia perguntar pra alguém o que era esse Deus de que tanto falavam. Por muito tempo, não me pareceu nada mais que um personagem de um livro como qualquer outro. Deus, política e óculos escuros são três coisas que nunca entendi. (Por que alguém usaria óculos escuros? Não compreendo a função, o valor estético, nada.)

Pode ter a ver com a minha criação, meus pais nunca tentaram me influenciar nesses assuntos e eu achei que tinha coisa melhor pra pensar até me tornar adulto. Talvez tivesse sido diferente se eu me chamasse Leonel, que é como meu pai tentou me batizar quando nasci, em homangem ao Brizola. Foi impedido energicamente pela minha mãe e o assunto é tabu no Galera´s Lair até hoje. Deve ser difícil dar nome a um Galera, esse sobrenome fantasia. Se eu tiver um filho homem, acho que chamarei de Golias. Se for mulher, não sei. Gosto de Sofia, mas tá na moda. Aí a pequena vai ter seis colegas com o mesmo nome na escola, que foi o que aconteceu com todos os Danieis da minha geração.

Pena que tu abriu de novo o flanco ao tabagismo, mas sabe-se que não é nada fácil, parabéns pela tenacidade com que lutou nessas semanas todas. Não desista. Todo o poder a André Conti.

E lembro bem daquele taxista canalha, que verme. Ficou tirando onda da tua cara enquanto tu botava os bofes pra fora. Eu lembro que depois ele começou a reclamar das dívidas no banco e relatou todo um processo de endividamento extremo no qual ele próprio era claramente o culpado. O cara mergulhou de cabeça na ruína e queria nos convencer de que o banco tava de sacanagem com ele e merecia um calote. Não é difícil ser um ser humano digno, é só assumir a responsabilidade por cada mísero ato próprio, só isso, e mesmo assim tem gente que consegue se fazer de vítima.

Mas enfim, sorte dos que podem viver o suficiente para olhar pra trás e dizer “tem alguma coisa aí, mas não sei direito o que é”. Tive alguns momentos do tipo nos anos recentes e há um padrão. Por exemplo: é impressionante a frequência com que tenho delírios de encerrar minha vida na internet e cortar 80% das relações pra me dedicar ao trabalho e a uma vida mais recolhida. Acontece às vezes quando bebo, e durante toda festa que vou, e sempre que estou nadando ou correndo, e antes de dormir, e quase sempre ao acordar e em vários momentos do dia em que as fragilidades do ego afloram à consciência.

É mais ou menos a sensação que tive durante meses antes de ir a Garopaba, e que resultaram na própria ideia/decisão de vender tudo e me mudar pra Garopaba, onde eu não conhecia ninguém e poderia nadar no mar todo dia de manhã cedo. Todavia, dessa vez não há uma ideia/destino como Garopaba, somente a sensação urgente de isolamento e dedicação total a algo sem sentido – no caso, o principal “algo” é terminar meu livro.

Contemplo com muita seriedade a ideia de erradicar minha presença em sites e redes sociais de qualquer espécie, e a sensação se estende também para os eventuais (e precários) relacionamentos com mulheres e a uma parte dos amigos, mas não se estende à família e aos amigos mais queridos. Não farei nada disso, obviamente, mas a sensação tem sido tão frequente que já desenvolvi um mecanismo de defesa que entra em ação no mesmo momento e me impede de tomar as atitudes descritas, e pela manhã, ou ao passar o trago ou sumir a consciência das fragilidades do ego, me sinto grato por ter tido a presença de espírito de não tomar nenhuma atitude precipitada, infantil, egoísta e patética. Todavia, em seguida aflora a consciência de que esse conjunto de atitudes precipitadas, infantis, egoístas e patéticas seriam exatamente as mais recomendadas, corretas e sinceras com relação ao meu propósito na vida nesse momento – escrever – e a um temperamento que continuadamente renega a interação social constante e as proximidades afetivas, embora no fundo as ligações afetivas em minha vida existam e sejam fortes, mas como que operando num nível aquém da experiência cotidiana ou mesmo da experiência possível.

É muito estranho, como se eu precisasse continuadamente lembrar que a solidão deve ser apreciada porque é a minha natureza, mas se é a minha natureza, porque eu deveria me lembrar conscientemente disso com tanta frequência? Tenho a sorte de conhecer minha natureza em profundidade, mas o azar de considerar duro e lamentável demais levá-la a cabo em plenitude, então vivo no meio do caminho, sem esquecer do mergulho radical que nunca darei, e ocasionalmente tirando proveito de certas condutas sociais que me exigem esforço tremendo e são contrárias ao chamado “ser vital”.  Há em algum lugar essa promessa não cumprida que me assombra diariamente.

Tem alguma coisa aí, mas não sei direito o que é.

Tchê, é ou não é fantástico viver? É como uma comparação que o David Mitchell usa no romance Ghostwritten pra um protagonista que não quer parar de pensar na japinha que entrou um dia na loja de discos onde ele trabalha: “é como não querer sair do chuveiro quente numa manhã de inverno.”

Mas o importante mesmo é que eu terminei “Valkyria Chronicles”, bicho. Que jogo.

Abraço medular,

D. Galera

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