Drummond e o Partido Comunista

Literatura

13.03.13

Carlos Drummond de Andrade Rio de Janeiro, 1964. © Alécio de Andrade, ADAGP, Paris. Acervo Instituto Moreira Salles

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
(“Nosso tempo”, em A rosa do povo, 1945)

Sábado, 15 de setembro de 1945. Esquina da avenida dos Andradas com rua Carijós, em Belo Horizonte, sede provisória do Partido Comunista em Minas Gerais. Um grupo agitado de militantes aguarda o comício no qual serão anunciados os candidatos ao cargo de deputado federal nas eleições prometidas para dezembro daquele ano. O PC está prestes a voltar à legalidade, depois de quase duas décadas atuando clandestinamente, e a movimentação política no país é intensa.

Os candidatos anunciados vêm de diversas classes sociais: Armando Ziller, bancário; Augusto Gilbert, garçom; Lindolfo Hill, pedreiro; Afrânio Azevedo, industrial; Virgílio Mineiro, médico; Carlos Drummond de Andrade, escritor. Um espião da Delegacia de Ordem Pública que acompanhou o comício anota: “Na ocasião falou o escritor Graciliano Ramos”.

É um fato inusitado para a biografia de Drummond. Conhecido por seu apartidarismo político, foi lançado como candidato a deputado pelo Partido Comunista, e o acontecimento passou batido por seus biógrafos. Naquele ano, ele já havia visitado o líder vermelho Luís Carlos Prestes na prisão, e seu nome aparecia em letras garrafais como um dos diretores da Tribuna Popular, jornal oficial do partido. A candidatura seria o ponto máximo de sua ligação com o PC.

O fato até hoje é lembrado por velhos comunistas mineiros e aparece em quatro documentos diferentes que consegui localizar – dois artigos do jornal O Estado de Minas, um relatório da polícia e um panfleto apreendido na época. Além destes, em uma tese de mestrado defendida na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a historiadora Raquel Pereira acrescenta: “… o lançamento oficial da campanha eleitoral contou com a presença de um considerável número de representantes e delegações do interior do Estado e do Comitê Nacional. Dentre as participações especiais destacamos a presença de Graciliano Ramos (representante do Comitê Nacional) e de Carlos Drummond de Andrade, oradores ativos das manifestações…”

Seria um acontecimento notável se a candidatura não naufragasse dois meses depois. Em novembro, quando a Tribuna Popular publicou a lista final com os candidatos a deputado pelo partido, o nome de Drummond não aparecia mais. Naquele ano, Graciliano Ramos saiu por Alagoas, Jorge Amado e Cândido Portinari por São Paulo. Teria o poeta recuado?

Em seu diário da época, publicado nos anos 1980, Drummond conta que recebeu um convite para se candidatar, mas recusou. Neste caso, seu nome teria sido usado à revelia pelo partido – tese que não agrada aos antigos companheiros de legenda.

O conflito de versões deve ser estudado à luz da tempestuosa ligação entre o maior poeta brasileiro e o Partido Comunista. Uma relação que começou com a visita a um presidiário e acabou em luta corporal alguns anos depois.

Salto para o comunismo

Drummond trabalhou por 11 anos como chefe de gabinete do ministro da Educação e Saúde do primeiro governo de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema. Durante esse período, procurou se afastar de questões políticas, empenhando-se em movimentar as engrenagens da máquina burocrática. Em 1936, quando se preparava o golpe do Estado Novo, colocou seu cargo à disposição, com receio de que esse apartidarismo pudesse prejudicar o ministro, amigo seu desde a juventude. Mas foi convencido a ficar.

Em 1945, o poeta encomendou, através de um amigo, o livro O capital, de Karl Marx, e começou a usar gírias de esquerda. As razões da transição nunca ficaram muito claras, mas certamente o incomodava ter sido envolvido sem querer no regime autoritário. Durante anos ele foi alvo de críticas dos opositores. É preciso lembrar também que, em 1942, o interventor de Minas, Benedito Valadares, mudou o nome de Itabira, terra natal do poeta, para Presidente Vargas. A cidade que é quase um personagem na poética drummondiana ficou até 1947 com o nome do ditador.

Num movimento brusco, Drummond saiu do gabinete para as fileiras do comunismo. Em 13 de março ele se demitiu do cargo. Duas semanas depois, conforme anotou em seu diário, foi à Chefia de Polícia solicitar uma visita ao líder comunista Luís Carlos Prestes, preso havia quase uma década pelo governo. O poeta e dois amigos se anunciaram como “intelectuais sem militância política, mas desejosos de viver politicamente os novos tempos”. E pediam instruções ao grande líder. Depois de 15 anos sob o mesmo regime, o país estava prestes a ter eleições democráticas.

Mas Drummond percebeu logo na prisão que o terreno da política é pantanoso. Disposto a lutar contra o ditador, encontrou Prestes falando em conciliação com Vargas. Nas páginas do diário, o poeta reflete sobre a complexidade desse universo que ainda tateava: “Tudo isso é muito complicado e tira a minha naturalidade, a minha verdade pessoal, o meu compromisso comigo mesmo. Mas anda lá, quarentão inexperiente de política!”.

Drummond continuava com ânimo para a luta. Em 1º de maio, aceitou o convite de Prestes para ser um dos diretores do recém-criado Tribuna Popular. Ele vestiu a camisa e, logo na edição de estreia, assinou um longo e laudatório artigo sobre Prestes. O poeta trabalhou por exatos 30 dias até começar a se sentir desconfortável na função. “Dos cinco diretores ostensivos, parece que somente dois o são de fato, mas não consigo estabelecer contato positivo com eles. Sem troca de ideias, sem orientação, as poucas coisas que redijo têm destino incerto”, anotou no diário. O jornal pecava até nos pormenores. Entre 1945 e 1947, o nome de Drummond foi escrito errado 40 vezes, inclusive no expediente, onde era grafado como Carlos “Drumond”.

“Situação irregular”

A divergência não o afastou definitivamente do jornal. Ele continuou trabalhando apenas como colaborador. Publicou poemas, traduções e manteve uma coluna de crítica literária. Mas seu nome persistia no cabeçalho como um dos diretores, embora ele houvesse se desligado da função no mês de junho. O prestígio de ter Drummond entre os dirigentes emprestava credibilidade ao veículo, e ele não quis criar caso por isto.

Em outubro, um golpe militar tirou Vargas do poder. No princípio de novembro, o jornal publicou um editorial em que criticava o golpe. Foi a gota d’água. No dia seguinte, o poeta enviou uma carta pedindo que seu nome fosse retirado do expediente. Homem de temperamento gentil, usou palavras bem medidas: “Quiseram os amigos da Tribuna manter o meu nome no cabeçalho, juntamente com os dos demais diretores. Não me opus a isso: primeiro, porque eu não tinha divergências doutrinárias com a Tribuna; segundo, porque não desejava oferecer com o meu afastamento, embora insignificante em si, pretexto para explorações de inimigos da Tribuna ou do Partido Comunista (…) Passaram-se porém alguns meses, e perdura uma situação a meu ver irregular, e que a própria Tribuna terá interesse em normalizar”.

O jornal suprimiu o nome dele do expediente no dia 7 de novembro. Era a primeira sinalização pública do afastamento entre o poeta e os comunistas. Uma semana depois, foi publicada a lista oficial dos candidatos a deputado em que Drummond não aparece mais. Com essa sequência de fatos, seria razoável supor que o poeta abandonou o jornal e, em seguida, a candidatura por seu descontentamento quanto à posição do partido frente à derrubada de Vargas. Mas em seus diários, ele expressa claramente que nunca participou de nenhum tipo de militância política mesmo antes disso. Provavelmente, seu nome foi usado à revelia no lançamento da candidatura em Belo Horizonte – assim como figurou irregularmente por meses no cabeçalho do jornal. Na melhor das hipóteses, tudo não passou de um mal-entendido.

A grande batalha

Mas a história continua. Nas eleições daquele ano, Drummond votou em Prestes para senador. Em 1946, assumiu a presidência do Ateneu Garcia Lorca, entidade ligada ao Partido Comunista, com a quixotesca missão de lutar contra a ditadura de Francisco Franco, na Espanha.

No ano seguinte, o PC foi colocado novamente na ilegalidade, sob o argumento de estar seguindo as diretrizes do governo soviético. Depois disso, o mandato de seus deputados, inclusive de Jorge Amado, foi caçado. O discurso da Guerra Fria, que apontava os comunistas como um perigo para a humanidade, impregnava o Brasil.

Drummond se manteve afastado desses episódios, mas viu crescer uma radicalização ideológica no país. Sem possibilidade de concorrer nas eleições, os militantes do PC passaram a disputar espaço em entidades civis. E um dos palcos da disputa política foi a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), organização bastante representativa no período, da qual o poeta era um dos fundadores. Drummond fez o possível para que a associação permanecesse desvinculada de qualquer orientação político-partidária. Começa aí a sua rixa com o partido. Em meio à disputa, o jornalista e escritor Moacir Werneck de Castro publicou um artigo chamando o poeta de “político frustrado”, o que o deixou furioso. Em seu diário, pela primeira vez Drummond refere-se aos comunistas como “eles”.

Em 1949, o Congresso de Escritores da ABDE ganhou contornos de batalha. Naquele ano, houve uma radical polarização dos associados: de um lado os comunistas e, do outro, os que defendiam a isenção ideológica da instituição. Drummond, motivado agora por ideais contra-revolucionários, foi um dos líderes do segundo time. Para ele, a associação deveria se dedicar aos interesses dos escritores, e só.

Um artigo de Carlos Lacerda no Correio da Manhã mostra o protagonismo do poeta nessa disputa: “Cumpre aqui destacar o valor e a significação do esforço do senhor Carlos Drummond de Andrade, a quem se deve, posso dizer, a decisão de resistir à dominação comunista na ABDE. Ele viu de perto. Ele sentiu. Ele sabe. Precisamente porque o seu nome foi emprestado para figurar no cabeçalho da antiga Tribuna Popular, os comunistas não se atrevem a atacá-lo de frente”. A chapa de Drummond, que tinha na presidência Afonso Arinos, derrotou a dos adversários por cem votos de diferença.

No dia da posse, entretanto, os comunistas se insurgiram. Notícia do Correio da Manhã diz que um grupo de militantes invadiu o evento para impedir que a nova chapa assumisse. O jornal segue descrevendo o tumulto: “Insultos, vociferações, não tendo faltado, mesmo, da parte de dois desconhecidos, a agressão física ao poeta Carlos Drummond de Andrade, que se defendeu com a maior energia”. Quem já viu foto de Drummond na época, magro e aparentemente frágil, pode imaginar sua situação vulnerável numa briga. Na semana seguinte, os integrantes de sua chapa e outros 400 escritores desligaram-se voluntariamente da associação. A cisão havia sido definitiva.

Esse acontecimento certamente marcou o poeta, que suprimiu todo o ano de 1949 do seu diário publicado nos anos 1980. Mas os antigos companheiros jamais se esqueceram da disputa. Nos anos seguintes, o jornal Imprensa Popular e a revista Fundamentos, ambos ligados ao PC, passaram a dirigir desaforos contra ele. O nome de Drummond, sempre que citado, vinha acompanhado de adjetivos como “traidor”, “reacionário”, “escritor decadente”, “vendido aos americanos”. O poeta não revidou. “Não me pegam de novo. Se alguém me falar mais em ABDE – embarco para o Amapá”, escreveu.

Em trecho de uma entrevista dada em 1984 a Gilberto Mansur, da revista Status, reproduzido no Caderno de Literatura Brasileira, do IMS, dedicado ao poeta, Drummond afirmou: “Eu achava que o Partido Comunista, que estava na ilegalidade, que era combatido das maneiras mais torpes – até com perseguição e morte -, trazia uma mensagem, uma novidade. Quando tive contato direto com eles, perdi completamente a ilusão”.

Depois de quase ser elevado à condição de candidato pelo Partido Comunista, ele foi vítima da ira dos seus militantes. Um epílogo triste para a tentativa de engajamento político do escritor que, em 1945, publicou A rosa do povo, um dos maiores exemplos da temática social na poesia brasileira.

* Marcelo Bortoloti, jornalista, é mestre em Artes e doutorando em Literatura pela UFRJ.

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