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Rubem Braga
Cumpadre meu Alvarenga, alvíssaras, meu bom!
Frequentador das frias alvoradas que me tornei aqui na serra, saboreio, envolto em lãs e flanelas, o meu café requentado, aliás tão bom quanto um passado na hora, detendo-me bovinamente a contemplar o verde ultramatizado da paisagem pela janela da sala-copa-cozinha aqui do chalezinho que alugo do meu dentista, meu palácio provisório das letras e dos ócios, entre araucárias hieráticas que velam por minha solidão voluntária (só a involuntária dói na alma e dá samba) e catalisam com seus ramos arqueados em cálice toda a inspiração que ronda os céus cinzentos desta Mantiqueira invernal, tal qual um Jacinto de Thormes de pijama, malha, duas meias quentes e chinelão. Inda bem que não estamos a nos falar num skype com vídeo. Não faço boa figura nesta manhã. É impossível ser elegante logo ao sair da cama. Por isso ainda não me olhei no espelho da pia, único da casa, o que não deixa de ter suas implicações ontológicas, pois como garantir que este que acordei agora há pouco é o mesmo que me deitei ontem por volta da meia-noite? E pior: qual dos dois é o eu verdadeiro que há de assinar esta derradeira missiva, ao fim e ao cabo?
Desgraça: acordei metafísico. Deve ser efeito desse café requentado que, bem considerando, tá é uma verdadeira droga. Mas quéde saco de passar um novo? Nada a fazer. Nem tocar um tango argentino me conferiria mais elegância e espessura existencial. Tocaria de bom grado um 78 rpm do Alvarenga & Ranchinho, isso sim, dupla sertaneja que cresci vendo na tevê, um no violão, o outro na viola, os dois de chapéu de palha. “Nos tempo que eu viajava pela estrada de Ouro Fino, de longe se avistava a figura de um menino…” Tinham um repertório próprio, com vários sucessos, mas não se cansavam de homenagear o repertório crássico do sertão e da roça nas apresentações e nos discos. “É a marvada pinga que me atrapaia…”
Ê mundo véio sem portêra du caraio a quatro.
Falo eu, falais vós. Ainda bem que você renunciou, meu atilado Marecha, ao nefando “vós” em sua última carta, num brado retumbante encapsulado entre expressivos travessões: “? basta de segundas pessoas do plural! ? “, com o que desobrigou-me aqui de tortuosas flexões verbais que poderiam dar em algo como “vós fôdes,” segunda pessoa do plural do pretérito obsceno do verbo fui segundo o Febeapá do Stanislaw Ponte Preta. Bem verdade que na minha segunda missiva eu tinha mandado uns “tu” até que bem flexionadinhos e tal, mó de dá um lustro literário pra coisa. Bullshitaço. Me arrependi tarde. E tomei um vós no contrafluxo. Mas agora felizmente restaurou-se a normalidade verbal: com eu e você a gente vai longe. De todo jeito, nem sei mais conjugar nenhum verbo direito. O futuro do pretérito do subjuntivo do presente mais que imperfeito dos dias que correm me aflige de uma tal maneira que é melhor ficar calado no meu canto esperando passar o chuvisco gelado que cai agora neste cartão postal serrano em que me instalei. Enquanto isso, ou por causa disso, sigo matraqueando aos leros e boleros cá no meu canto, implorando ao cultivado amigo que releve os erros do meu português ruim, se é que ainda posso citar Roberto Carlos sem ser imediatamente processado por ele.
E aproveito pra deixar registrado em cartório, com firma reconhecida, estampilhas carimbadas e impostos e emolumentos devidamente recolhidos: hoje hei de tomar banho. Sim senhor, xuá completo: cara-pé-cu, e todo o resto, cabelo inclusive, com bastante xampu.
Prosseguindo na linha papo vadio, mas não necessariamente furado, e procrastinando o quanto possível a entrada nos graves assuntos históricos que a sua douta missiva levanta (olha ela aí de novo, a inescapável atriz de filmes com mensagem, a princesa gitana dos tristes Cárpatos, ora extraviada nos conturbados trópicos, a crooner sustenida dos Bemóis Selvagens… ops! Bambolês Simultâneos, digo. Gente, essas araucárias muito loucas estão sugando lentamente o que resta da minha já rala memória…), devo dizer o quanto me empolgou ouvir de seu punho falante, ó príncipe da oralidade brasileira, e carioca em particular, as histórias sobre o cariocapixaba cronista e passarinheiro Rubem Braga. Nunca poderia imaginar que ele tivesse sido um antissufragista feminino, como também desconhecia o caso que ele teve com a mulher do Wainer, não a Danuza, a outra, como era mesmo o nome dela? Txô ver aqui… Bluma. Belo nome de mulher. Só pelo nome já mereceu aquela estátua no jardim suspenso do maior cronista brasileiro de todos os tempos geridos por Cronos, o deus suíço da pontualidade, se não me engano. Bluma. Não teria Bluma algum parentesco longínquo com Missiva Levanta, por parte de primos de elevado grau encafuados nas gélidas estepes da Bessarábia?
Concordo a plenos pulmões com a sua tese sobre o Braga de que o “negócio dele era achar o mato dentro da cidade grande.” E não deixa de ser irônico pensar que, ao contrário do “velho, solitário, casmurro, resmungão, com grossas sobrancelhas e bigode em forma de trapézio,” na sua precisa descrição, vim praqui achar o mato dentro do mato mesmo, deixando pra trás a cidade convulsionada. (Na verdade, não consegui escapar de todo das atuais convulsões sociais da patriamada, como creio que te contarei mais à frente).
Do Braga, além das coletâneas de crônicas que li a partir do final da adolescência em aura de santidade – a série da borboleta amarela que o cronista persegue pelas ruas do Rio e a da mulher que, na guerra, espera em vão pelo marido e que, em sua aflição, acaba travando perigoso colóquio com o diabo, estão gravadas com tinta indelével na minha memória afetiva – lembro-me de uma história que macabra seria, não fosse ungida pelo humor que o Velho do Restêlo de Itapemirim sabia imprimir às coisas da vida, e até às da morte.
A história começa, ao que me consta, quando o Braga é diagnosticado com um câncer por demais invasivo e informado pelo médico amigo e sincero de que seus dias estavam se encurtando rapidamente. Conformado e talvez até aliviado com a infausta notícia, o Velho pega um Elektra da ponte aérea, desce em São Paulo, entra num táxi e pede para ser conduzido ao cemitério da Vila Alpina, único no eixo Rio-São Paulo que cremava cadáveres na época, até onde me informa minha informe memória.
Tratando com o funcionário da administração da grelha mortuária, Rubem Braga lhe passa os dados do cidadão a ser cremado e saca o talão de cheques. Mas falta um documento para completar a transação: o certificado de óbito do falecido.
“Trago depois”, afiança o mestre. “Junto com o cadáver”.
“E onde está o cadáver?”
“Você está falando com ele. E vamos logo com isso que eu não tenho tempo a perder”, teria replicado Rubem Braga fazendo jus à fama de turrão sem saco pra recalcitrâncias burocráticas.
Não sei se o causo procede de fato, nem se o Braga virou cinza em São Paulo, que, além de túmulo do samba, teria virado também forno crematório de cronistas geniais. Pobre Pauliceia, quem se dispuser a cantar teus encantos terá primeiro que inventá-los.
Outra historieta envolvendo o Braga quase me teve por testumanha, cê acredita? Foi lá na barafunda dos anos 80, no Pirandello, o bar e restaurante do Baixo Augusta que congregava cerca de 100% da boemia paulistana da época, sob a égide do então gordo Maschio (hoje está um palito elegante) e do sempre magro Vladimir, donos da biboca, o primeiro um cozinheiro e festeiro de mão cheia, o segundo, sempre com seu chapliniano chapéu-coco, um conhecido jornalista que escrevia sobre artes e espetáculos no hoje extinto Jornal da Tarde.
Nesse tempo eu morava no mesmo edifício que o meu querido amigo Mário Prata, em Higienópolis, e era comum sairmos juntos à noite de nossos cafofos pra mendigar o tumulto nas ruas, como diria Pascal. Imagine você que numa dessas noites me passa o Prata em casa pra me arrastar ao Pirandello, onde ele iria se encontrar com ninguém menos que o Rubem Braga, que estava em São Paulo tratando, desta feita, de assuntos mais amenos que a cremação dos próprios despojos mortais, como viria a fazer anos depois. Ocorre que, de namorada nova a tiracolo, decidi ficar em casa, mais precisamente na cama, explorando com afinco os aprazíveis rincões recreativos de jovem corpo da amada – todos dispúnhamos de jovens corpos naquela altura -, e assim foi que não tive o histórico prazer de conhecer o velho urso. Quão tolo é o sujeito que se deixa levar, ou melhor, ficar, por sua famigerada e famélica libido.
No dia seguinte, o Prata veio me espezinhar com relatos apetitosos da magnífica conversação de horas a fio que tivera com o Braga numa mesa do Piranda. Disse o Prata que, a certa altura, ele e seu ilustre comensal avistaram uma esfuziante e obesa senhora adentrar o recinto e se pôr a mirar-se com narcísica desenvoltura num dos muitos espelhos afixados nas paredes do casarão restaurado dos anos 20 que teria pertencido a Oswald de Andrade, informação esta que nunca pude confirmar. Vendo a mocreia se pavoneando daquele jeito diante do espelho, o velho cronista saiu-se com essa pérola de sexismo esclarecido: “Certos espelhos deveriam refletir melhor antes de refletir certas mulheres.”
Bom seria gastar todo o papel virtual de que disponho tratando das crônicas magistrais do Braga e de seu infindável anedotário pessoal. Mas, como diz você, questões mais comezinhas se impõem. Os protestos. Sim, tem razão você, os protestos são, de fato, espetaculares, quando vistos na tevê em seu auge de violência e paixão. Ninguém sabe bem no que vão dar, embora já tenham tido a força de anular um aumento de tarifa de ônibus e fazer a presidenta cogitar um plebiscito para mudar as regras podres do nosso jogo político, onde “quiém no llora no mama y quiém no roba es um gil,” sendo gil, como todos sabem, uma gíria portenha para otário – palavra que, por acaso, também se origina no lufardo buenairense, se me permite uma pernóstica mas breve digressão etimológica.
Aninhado e alheado aqui nos refolhos bucólicos da Mantiqueira, não tinha tido ainda contato com os protestos até voltar a São Paulo na semana passada. Caminhando num fim de tarde pela Paulista, topei com dois blocos de protestantes entoando palavras de ordem, ostentando cartazes e batendo tambores. O primeiro bloco, mais numeroso, embora não chegasse a ter uma centena de participantes, se insurgia contra o inenarrável deputado Feliciano e sua “cura gay” que faria até o Ubu-Rei engolir em seco. O segundo bloco, seguido de um cortejo de policiais militares liricamente equilibrados em bicicletas, era ainda menos populoso que o primeiro e com um escopo reivindicativo bem mais restrito e contundente. A julgar pelo único refrão que esgoelavam na frente do MASP, tudo que aquele povinho pleiteava é que a presidenta Dilma viesse a praticar o sexo anal, assim, de um modo genérico. Às vezes acho o Brasil um lugar algo estranho para se viver, embora não saiba dizer que lugar haveria de ser menos estranho. O Paraguai, talvez?
Novo contato com os novos e turbulentos tempos eu tive ao voltar pra cá, na sexta passada. Depois de enfrentar um trânsito catatônico de quase duas horas pra sair da cidade, por conta apenas do excesso de carros querendo fugir de São Paulo no primeiro dia de férias escolares, finalmente rodei solto pela Carvalho Pinto até embocar na estrada de Campos do Jordão, que costumo pegar até Santo Antônio do Pinhal, de onde me lanço por estradinhas vicinais rumo ao abençoado sul de Minas. Não consegui chegar a Santo Antônio, porém. Logo no início da estrada de Campos, o trânsito parou por completo. O motivo não tardou a circular entre os motoristas que, fora de seus veículos, tentavam decifrar que porra estava acontecendo lá na frente. Obras? Acidente? Nada disso: manifestação. Um grupo de pessoas tinha fechado a estrada no trevo de Tremembé. Ninguém ia, ninguém vinha. Tudo parado. Não consegui ver os manifestantes e tampouco tive notícia de suas bandeiras e reivindicações. Talvez fosse mais uma contra o porquêra do Feliciano, se é que não estavam sugerindo a nossos governantes que fossem praticar sexo anal passivo alhures e nos deixassem em paz. Difícil aqui saber o que o cu tem a ver com a causa, mas, enfim, depois de uma hora ali parado, consegui fazer o retorno na estrada para tentar um caminho alternativo por São José dos Campos e Monteiro Lobato. Deu certo. Acabei chegando aqui na minha choupana literária às 11 e meia da noite, depois de ter saído de casa às 4 e meia da tarde. Sete horas de viagem, quando o normal é três.
Tudo bem, cá estou eu já há 3 chuvisquentos dias instalado em minha confortável alienação rupestre enquanto as cidades ardem e doem como as aftas daquele famoso adágio germânico: “Asaftasardemdoem.” Sinto-me como o Guimarães Rosa citado por você em sua impressionante descrição do Bogotazo de 1948, d’aprés Antônio Callado e Joel Silveira. Nosso artista maior das letras lia Proust enquanto o circo pegava fogo lá fora, a exemplo do velho Aires do Machadão, diplomata como o Rosa, só que do Império. Lembra dessa passagem, meu doce Alvaro, acho que do Esaú e Jacó – e não do Memorial de Aires – em que o fogoso Aires, na cama com uma não menos fogosa senhora, num país latino-americano, ouve lá fora a turba multa em rumorosa agitação? A mulher, tão pelada quanto assustada, pergunta: “Que confusão é essa? Será o governo que cai?” Ao que o seu fleumático amante responde: “Se não é o governo que cai, deve ser o governo que sobe. Deixa pra lá e vamos continuar a função aqui que dá mais certo.”
Bem, na verdade não estou em Gonçalvez de costas pra história lendo Proust. Estou é tentando arduamente virar um primo do vizinho do concunhado do Proust, se tanto. Pode avisar, aliás, nossa bela e risonha Renatinha Megale de que tem, sim, romance novo à vista. Aqui na minha frente estão as araucárias que não me deixam mentir. Na verdade, até deixam. As araucárias são famosas por sua infinita leniência diante dos vícios e malfeitos humanos. Tudo que reivindicam é seu direito inalienável de integrar verticamente a paisagem. Enquanto isso, e salvo melhor juízo, vou recolhendo os flaps, velhão, não sem antes estreitá-lo num forte e caloroso abraço. E que nossa próxima tertúlia seja ao vivo e flambada em bons álcoois, se é que o plural de álcool é mesmo esse.
Dom Reynaldo de los Pinhones Asados,
gran caballero de la imperial Ordem de las Cucarachas Borrachas
PS: Que gata essa Adele Fátima, hein? Pena que você a conheceu já entrada em quilos. Também, devorando os croquetes de carne, risoles de camarão e cervejinhas geladas, servidos em doses industriais pelo marido, segundo você saborosamente nos conta, como manter a forma de musa pornochanchadesca? Outro dia vi uma foto recente e igualmente desestimulante de outra musa do cinemá brésilien que embalou meus onanismos juvenis, lá nos anos 60: Vanja Orico. Manja a Vanja? Aparecia peladinha em flor num filme de cangaceiro cujo nome nem por milagre vou lembrar aqui, dirigido, acho eu, pelo Carlos Coimbra, especialista no gênero árido movie. Foi a primeira vez que vi o pelame púbico de uma senhôra na tela. Foi um desses alumbramentos que marcam pra sempre a vida de um homem. Ó xente!