A terra e o transe em Boa sorte,meu amor

No cinema

13.09.13

"Boa sorte, meu amor"

Já escrevi aqui que o cinema pernambucano tem sido o que melhor encara – e escancara – a sobreposição, no Brasil, de um presente de aparência moderna e uma herança histórica de mandonismo e opressão social. A mais nova comprovação dessa ideia é Boa sorte, meu amor, surpreendente longa-metragem de estreia de Daniel Aragão que entra em cartaz hoje (13 de setembro) em várias cidades brasileiras.

http://www.youtube.com/watch?v=spi6pgHW_qI

Numa sinopse grosseira, podemos dizer que se trata da história de amor entre um rapaz da elite pernambucana, Dirceu (Vinicius Zinn), arquiteto numa empresa de demolição no Recife, e uma estudante de música, Maria (Christiana Ubach), que ganha a vida como recepcionista de festas e distribuindo panfletos no semáforo.

Dois planos-sequência apresentados logo no início de certa forma balizam o filme tanto em termos temáticos como estéticos. Na cena de abertura, uma conversa estarrecedora entre pai e filho (na verdade, um monólogo do pai) expõe as raízes brutais da família, numa explanação que vale por uma aula sobre a formação da sociedade brasileira. Pouco depois, um hipnótico close em câmera lenta de Maria (em sua primeira aparição), ao som de Jack Wilson cantando I don’t need you around, nos lança com Dirceu no terreno movediço da fascinação.

Se um plano ancora o protagonista na terra, no mundo social e histórico “real”, o outro o desestabiliza e atordoa, arrastando-o para o sonho, senão para o pesadelo e a alucinação.

Estética da desmesura

Os bons filmes de uma safra costumam iluminar uns aos outros, nem que seja por contraste. Dessa perspectiva, O som ao redor e Boa sorte, meu amor são opostos que se complementam. Se o filme de Kleber Mendonça Filho é um prodígio de equilíbrio e sutileza, o de Daniel Aragão é “petulante, ambicioso, desgovernado”, como escreveu o jovem crítico Fábio Andrade na melhor crítica que li a respeito. É dessa desmesura que ele extrai sua força, ainda que exponha também suas fragilidades.

A ambição estética de Aragão fica evidente já por suas escolhas iniciais: o preto e branco brilhante da fotografia, o cinemascope do qual se exploram ao máximo as possibilidades de enquadramento e distorção, a exuberância da trilha sonora. Tudo isso nos diz, quase nos grita, que ele não está ali para contar uma historinha banal e verossímil.

Ao incorporar em sua própria fatura o transe de seu protagonista, o filme ocasionalmente resvala, sobretudo em seu terço final, para um certo inchaço estético (distorções de luz e som, enquadramentos oblíquos, vertiginosos plongées) e para rupturas frontais com o realismo que, a meu ver, nem sempre se justificam. A tendência à alegoria corre o risco de afrouxar o impacto de uma narrativa tão contundente.

Deter-se ranzinzamente nesses possíveis deslizes seria mesquinho. Afinal, a opção pelo risco implica a possibilidade do erro. E o próprio erro pode ser fecundo. Aliás, o que é “erro” em arte, ou mesmo na vida? Talvez seja o caso de lembrar uma frase de Julio Cortázar: “Em minha juventude se dizia de Greta Garbo que tinha os pés muito grandes. Eu pensava: sim, mas todo o resto é de uma deusa”. Cada um repara no que quer.

, , ,