O coração do Brasil

Fotografia

12.09.11

O texto abaixo é a versão em português do texto que integra o catálogo José Medeiros – Chroniques brésiliennes, título da exposição que vai de 14/9 a 3/12/11 na Maison de l’Amérique Latine, em Paris. Nessa retrospectiva, 160 imagens de variados temas ilustram a importância de José Medeiros – cujo acervo está sob a guarda do IMS – no retrato do Brasil nos anos 1940 e 1950. Abaixo, também segue uma galeria de 20 imagens dessa mostra.

“Não há cidade mais bela no mundo,
e talvez não haja outra que seja
mais misteriosa, mais heterogênea.”
(Stefan Zweig, 1941)

 

“Intuitivamente, José Medeiros unia, fundia
os homens com a paisagem,
na melhor tradição de grandes artistas
que nos sabem sujeitos não mais
?renascentistas’ nem neoclássicos,
que nos sabem, desde Cézanne,
sujeitos ?descentrados’, objetos equivalentes à
paisagem e aos objetos do mundo.”
(Arnaldo Jabor, 2005)

Os portugueses a descobriram no século 16, os franceses a cobiçaram na mesma época, e só quando os colonizadores lusos finalmente expulsaram os últimos corsários gauleses ela deixou de ser um arraial à beira d’água e ganhou nome: São Sebastião do Rio de Janeiro; mais tarde Rio de Janeiro – até ser mundialmente celebrizada como Rio apenas. Os franceses não sabem o que perderam; ou melhor, sabem sim, e para compensar o malogro da França Antártica esboçada por Villegaignon tentaram conquistá-la com as armas da cultura. Deu certo. A partir da chegada da Missão Artística Francesa, em 1816, o Rio rendeu-se à França: na arquitetura (Grandjean de Montigny), nas artes plásticas (Debret, Taunay), no planejamento urbano (Glaziou, Agache), sem contar o Barão Haussmann, que nem precisou vir ao Brasil para ensinar ao prefeito Pereira Passos, nos primeiros anos do século 20, com quantos jardins e bulevares se faz uma Paris. Uma Paris tropical, uma Paris sur-mer.

Encravada entre o mar e montanhas, de frente para uma baía e de costas para a Mata Atlântica, é o mais famoso portal do Brasil, sua maior atração turística, seu maior orgulho paisagístico, a mistura perfeita do bucólico e do silvestre com a agitação urbana. Capital de um reino, de um império e de uma república, “nobre e grande sobretudo pelo que tem de leviana, de gratuita, inconsequente, boêmia e sentimental”, como resumiu à perfeição o cronista Rubem Braga; síntese simbólica do país, berço adotivo de todos os brasileiros (23% de seus habitantes são migrantes internos), o Rio é, de todos os balneários dos sete mares que lhe disputam esta palma, o mais cosmopolita – e o único que se revelou capaz de criar fenômenos e modismos culturais de repercussão mundial (do maxixe à bossa nova, da peteca ao frescobol, da feijoada ao biquíni fio-dental).

Assim que a viu pela primeira vez, em 1912, a francesa Jeanne Catulle Mendes batizou-a de “Ville Merveilleuse”, dando na bandeja ao compositor André Filho o mote para a marchinha “Cidade maravilhosa” (“cheia de encantos mil”, “coração do meu Brasil”), que desde 1935 anima o carnaval carioca e há tempos tornou-se, por essa razão, o hino oficial da cidade. Por coincidência, também foi em 1935 que outro visitante francês, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, passou rápido pelo Rio, a caminho da Universidade de São Paulo, e entrou para a história como o único estrangeiro a não se deslumbrar com a visão da entrada da baía de Guanabara. A bem dizer, Lévi-Strauss detestou a baía, não achou a menor graça nos tão decantados morros do Pão de Açúcar e Corcovado, os mais notórios cartões postais da cidade, por ele reduzidos a dois “tocos de dentes perdidos nos quatro cantos de uma boca banguela”. Ele jamais entenderia por que o compositor americano Cole Porter, ao vislumbrar, meses depois, a mesma vista, do convés de um transatlântico, soltou duas exclamações (“It’s delightful! It’s delicious!”) e, inspirado pelas luzes da enseada de Botafogo, esboçou, ali mesmo, a primeira estrofe da canção “It’s De-lovely”.

As primeiras imagens em movimento feitas no Brasil mostravam justamente a entrada da baía. A câmera era francesa, e o cinegrafista, de origem italiana: Paschoal Segreto, retornando de uma viagem à Europa em 1898. Tão inevitável quanto irresistível, a baía seria a principal atração das primeiras imagens em cores captadas no país: para um daqueles traveltalks filmados ao redor do planeta pelo americano James A. FitzPatrick, Rio, The Wondrous City (disponível no You Tube), rodado em 1936, seis anos antes do segundo registro em cores da cidade: algumas cenas do inacabado documentário dirigido por Orson Welles, It’s all true. Foi naquele período, entre as décadas de 1930 e 1940, com o cinema aprendendo a falar e burilar o technicolor, que a cidade se projetou para o resto do mundo, se tornou um fetiche turístico, ainda que muitas vezes só mostrada em preto & branco, como, aliás, ocorrera em sua estreia oficial na tela, no musical Voando para o Rio (Flying down to Rio), lançado com fanfarra no Radio City Music Hall de Nova York, no Natal de 1933.

Sua mais célebre exaltação cinematográfica, contudo, seria obra de um cineasta francês, Marcel Camus, filmada em cores e cenários autênticos, no final da década de 1950, com base numa ópera popular de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, que na tela ganhou o título de Orfeu Negro. Transposição para uma favela da mitológica tragédia de Orfeu e Eurídice, com músicas de Antonio Carlos Jobim e Luiz Bonfá, há cinco décadas o filme de Camus permanece absoluto como a mais persuasiva peça de marketing internacional da cidade, de seu carnaval, de sua música, da joie de vivre de sua gente e da força da cultura negra. Milhões de pessoas foram apresentadas ao Rio por meio das imagens idílicas de Orfeu Negro, inclusive o presidente americano Barack Obama. O filme é ingênuo mas expressivo de uma época de otimismo (surto desenvolvimentista, efervescência cultural: são deste período as primeiras criações da bossa nova e do Cinema Novo) que dali a pouco tempo se esfumaria, com a transferência da capital para Brasília e o golpe militar de 1964.

Até fins do século 19, o centro do Rio fora o centro de tudo, seu núcleo comercial, financeiro, cultural, sua alma boêmia e carnavalesca, seu privilegiado mirante para a baía. Suas elites moravam em palacetes coloniais não muito afastados do centro. Com a descoberta e a popularização do banho de mar, elas se tocaram para os bairros litorâneos da Zona Sul. Copacabana era então pouco mais que um areal deserto, com cajueiros e pitangueiras, lugar para piqueniques e residências de fim de semana. Seria ali, ao redor de uma elipse perfeita pavimentada por ondulantes pedras portuguesas e aos poucos cercada por prédios de apartamentos, que o Rio consolidaria sua mística, construiria sua modernidade, mostraria ao resto do país como ser cosmopolita – não mais à francesa, como no fastígio das avenidas centrais, dos cafés-concertos, das confeitarias, mas à americana, com edifícios, sorveterias, cassinos, boates e lanchonetes. Até o carnaval de salão se deslocou para a Zona Sul, seguindo o exemplo das corridas de cavalos, que em 1926 trocaram o prado do Derby Club (onde 24 anos mais tarde surgiria o estádio de futebol do Maracanã), pelo Jóquei Clube da Gávea.

“Pérola do Atlântico”, “princesinha do mar”, vários epítetos deram a Copacabana, que até ser desbancada por Ipanema, nos anos 1960, foi o bairro mais fotografado do Brasil, um lugar mágico em que todos sonhavam morar, o nec plus ultra do hedonismo democrático (“de calção de banho é impossível a gente distinguir quem é o milionário Carlos Guinle ou o bookmaker da esquina”, observou numa crônica o jornalista Joel Silveira), o suprassumo da desinibição, fonte ininterrupta de novidades comportamentais. Sua fauna tinha um jeito peculiar de vestir (as moças de short ou de calças, os homens sem chapéu, paletó e gravata) e até de falar, com gírias próprias ou recém-importadas da Argentina. O escritor austríaco Stefan Zweig identificou Copacabana como um dos símbolos mais expressivos do “país do futuro” no qual passou os dois últimos anos de sua vida: uma compacta Riviera de costas para o resto da cidade, de olho no mundo lá fora. Com um calçadão para todo tipo de gente: “príncipes, ladrões, banqueiros, pederastas, estrangeiros que puxam cachorros, mulheres de vida fácil ou difícil, vendedores de pipocas, milionários, cocainômanos, diplomatas, lésbicas, bancários, poetas, políticos, assassinos e bookmakers”, relacionou Antonio Maria, um dos mais atentos e lidos cronistas da vida noturna carioca da década de 1950.

A maior distinção do milionário Carlos Guinle foi ter bancado a construção do hotel Copacabana Palace, erguido na Avenida Atlântica para celebrar o centenário da Independência, em 1922, e receber à altura o rei da Bélgica, no ano seguinte. Projeto do arquiteto francês Joseph Gire, seguindo o modelo neoclássico do luxuoso hotel Negresco, em Nice, destacou-se logo como o mais sofisticado e bem frequentado da América Latina, ponto de encontro da alta burguesia local com vips nobres e plebeus do mundo inteiro. Com a reabertura dos cassinos em 1934 (eles haviam sido fechados 17 anos antes), o Copacabana Palace passou a contar com mais uma nova atração, e não das menores.

Enquanto na praia defronte um novo estilo de banho de mar se impunha, com ousado figurino (maiôs menos austeros, precursores dos biquínis e das tangas entronizados nas décadas seguintes) e a prática dos mais variados esportes (com destaque para a peteca, invenção indígena que virou coqueluche nas areias do Rio no pós-guerra, o onipresente futebol, e o rigorosamente autóctone frescobol), no interior do suntuoso hotel a festa dos happy few parecia não ter fim, ora na pérgula, ora à beira das piscina, ora nos salões, à tarde, à noite, emendando bailes (tradicionais e a fantasia, durante o carnaval), concursos de elegância, desfiles de misses, jantares beneficentes e os shows de música no Golden Room, frequentemente prestigiados pelos ídolos radiofônicos do país e astros musicais da Europa e das Américas. O Copacabana Palace não era, evidentemente, o único reduto mundano da Zona Sul do Rio. Com a liberação do jogo, outro hotel de frente para o mar, na praia da Urca, virou cassino – e que cassino! Seu proprietário, Joaquim Rolla, apostou alto: um complexo de tavolagem e show business como nem em Las Vegas ainda havia. Durante 12 anos, ou seja, até o jogo ser novamente proibido em 1946, o Cassino da Urca foi para o Rio algo próximo do Rick’s Café Américain do filme Casablanca, o ponto de convergência noturno de artistas, grã-finos e amigos da roleta. Palco das maiores estrelas da música popular brasileira (Carmen Miranda saiu de lá direto para a Broadway e Hollywood, Orson Welles encantou-se pelo ator Grande Otelo depois de vê-lo em cena num show carnavalesco), a Urca tornou-se o destino infalível de uma infinidade de cantores, instrumentistas e dançarinos de renome internacional, sobretudo depois que a guerra estourou na Europa.

Em meados dos anos 1940, as roletas foram aposentadas, mas a dolce vita carioca não arrefeceu seu ritmo. Aos cassinos, reduzidos a casas de show, sucedeu um sem-número de bares e boates com nomes importados (Casablanca, Monte Carlo, Bacará, Chez Colbert etc) em cujos tablados pelo menos duas gerações de cantores e músicos despontaram para a glória. Parte do núcleo criador da moderna música popular brasileira, vale dizer os pais da bossa nova, foi formada na legendária boate do Hotel Vogue, na fronteira do Leme com Copacabana, onde também se podia ouvir o melhor jazz da cidade. Com a destruição do hotel por um incêndio, em 1955, o grande rival do Golden Room do Copacabana Palace passou a ser a boate Sacha’s, do pianista turco-parisiense Sacha Rubin, órfão do Vogue. Em seguida, veio o lendário Beco das Garrafas, também em Copacabana, um agrupamento de minúsculos night clubs onde o samba e o jazz juntaram seus sortilégios para escrever um dos mais excitantes capítulos da história do show business brasileiro. Foi daquele beco que Sergio Mendes, entre outros, partiu para conquistar a América.

Desde 1939 no Rio, o piauiense José Medeiros testemunhou a melhor parte da transformação da Cidade Maravilhosa em metrópole sofisticada. Com sua câmera vocacionalmente jornalística e espiritualmente atgetiana, captou os momentos mais expressivos daquela metamorfose, da folgança matinal na praia às elegantes tardes no Jóquei Clube e à féerie das soirées dançantes, dos bastidores dos cassinos aos bailes de máscara black tie nos hotéis de luxo. Quando da montagem de Orfeu da Conceição, no Teatro Municipal, cinco anos antes do filme Orfeu Negro, não se pensou em outro profissional para registrar em imagens cada etapa daquela histórica produção teatral, que, até por já ter nascido histórica, exigia o olhar especial de um dos mais sensíveis historiadores visuais da cidade.

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