A musa ambígua sai de cena

Miscelânea

14.08.14

Elaine Stritch era uma mistura de Bibi Ferreira com Dercy Gonçalves. Atriz e cantora excepcional, armava-se com o escracho contra uma mal disfarçada melancolia. Talvez por isso, por essa ambiguidade, tenha sido a voz ideal para as canções de Stephen Sondheim. E tenha se tornado, assim como ele, um patrimônio de Nova York. Na última cena de Elaine Stritch: Shoot me, documentário que estreou nos EUA ano passado, anunciava que trocaria o quarto do Carlyle, o mítico hotel do Upper East Side onde morava, por uma casa em Birmingham, no Michigan onde nasceu. Foi lá que, em 17 de julho último, morreu dormindo. Tinha 89 anos e o status ambíguo dos mitos cult, menos reconhecida do que poderia – e sobretudo gostaria – pelo grande público.

Em quase 70 anos de carreira, só foi devidamente festejada – com um Tony e um Emmy, os principais prêmios do teatro e da TV – pelo Elaine Stritch at Liberty, um one woman show em que cantava e contava histórias de sua vida. Em entrevistas, não escondia sua contrariedade com o reconhecimento tardio. A polidez protocolar não era seu forte, como tampouco era as bobagens que costumam frequentar entrevistas dos grandes nomes do show business americano. O alcoolismo, por exemplo, era um incidente de percurso como outro qualquer: “Sim, a vida fica melhor com álcool. Qual o problema?”.

Na uma hora e 20 de Shoot me, que pode ser visto no Netflix, Elaine se mostra com um despudor impressionante. O documentário dirigido por Chiemi Karasawa flagra os momentos de ensaio para o recital de canções de Sondheim que ela estreou no Café Carlyle em 2010. São divertidos e dramáticos, pois expõem os sérios problemas de memória e concentração de uma senhora debilitada pela diabetes que, aos 85 anos, sobe no pequeno palco do café vestindo uma camisa branca masculina comprida solta sobre… meias pretas. E só. Com ela nada era simples, fácil ou previsível.

Quando conheceu James Gandolfini, o Tony Soprano, caiu de amores. Numa première da série, declarou-se: “Você está maravilhoso”. Ele agradeceu protocolarmente e já ia saindo para o próximo cumprimento da noite quando ouviu a voz inconfundível gritar: “Não seja condescendente comigo, seu filho da puta!”. Aí ele gamou. No filme, que terminou dedicado à sua memória, Gandolfini declara: “Não tenho dúvidas de que se tivéssemos nos encontrado quando tínhamos 35 anos teríamos tido um romance tórrido. E que teria terminado muito mal”.

Elaine participou de mais de 20 filmes. Foram muitos papéis menos importantes do que ela e pelo menos um à sua altura: o da mãe de Mia Farrow em Setembro, de 1987. Mais de dez anos depois, voltaria a trabalhar com Woody Allen em Trapaceiros, onde aparece em uma única cena, como uma perua milionária. Na TV, devidamente alçada à condição de musa cult, fez a mãe de Alec Baldwin em 30 Rock.

Mas foi nos musicais com cérebro de Sondheim que Elaine Stritch brilhou mais intensamente, transformando duas canções em suas marcas registradas, as longas e difícieis “Ladies Who lunch”, de Company, e “I’m still here”, de Follies. Da primeira, há o impressionante registro no documentário de D. A. Pennebaker sobre as gravações da trilha sonora no original. No trecho abaixo, ela repete a canção pela enésima vez, encontrando finalmente a raiva adequada para a mulher que canta a vida sem propósito, entre aulas de arte e muita bebida, das mulheres bem de vida que almoçam juntas na Manhattan dos anos 1970.

Em “I’m still here” ela foi ficando melhor com o tempo. O que não é exatamente uma surpresa, pois a personagem percorre uma longa list song para dizer como sobreviveu à Grande Depressão, a Gandhi, à moda de jogar Mahjong, ao macartismo e até à falta de talento. Stritch é puro som, fúria e muito deboche. E aqui valem duas versões. A primeira, de 2010, no concerto que comemorou os 80 anos de Sondheim, era uma declaração de princípios: ela, Elaine, ainda estava ali, apesar de tudo, inteira:

Na segunda, do mesmo ano, ela canta para Obama e Michelle, numa pequena sala da Casa Branca. É acompanhada por seu fiel pianista dos últimos tempos, Rob Bowman, e ainda está ali, mas com sérios problemas de memória. Mas ela é Elaine Stritch e recusa a condescendência da platéia. Quando erra a primeira vez, dá um tapa no piano e recomeça. Quando finalmente retoma, murmura: “Oh boy, você não sabe como fico mal”.

 

Numa entrevista reproduzida pelo New York Times, dizia viver “em expectativa”. O sábado era passado à espera do domingo, o domingo à espera da segunda. Entre uma coisa e outra, recomendava, numa mistura de ceticismo e hedonismo: “Enquanto isso, fique na porra do lugar onde você está e procure aproveitar da melhor maneira”.

Ok, Elaine. Recebido.

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