Amazônia ou A dramaturgia da fauna

No cinema

27.06.14

A natureza selvagem, sobretudo numa floresta tropical como a amazônica, é exuberante, excessiva e, aparentemente, caótica. Há nela uma lógica, certamente, mas não visível ao primeiro olhar.

Observada à distância, numa tomada aérea, a selva é uma extensão verde, contínua e monótona. Vista de perto, ao contrário, é uma profusão de seres, cores, sombras, texturas, formas de vida. Num caso e no outro, esse caos fervilhante nos escapa e parece impossível dar-lhe um sentido.

Foi esse desafio, o de construir uma narrativa inteligível e envolvente a partir unicamente dos dados reais da floresta (sua fauna e sua flora), que os realizadores de Amazônia decidiram enfrentar. Como não poderia deixar de ser, é um empreendimento coletivo: coprodução franco-brasileira que conta com nada menos que oito produtores e meia dúzia de roteiristas. A direção é do francês Thierry Ragobert, especialista em documentários sobre a natureza.

O fio condutor da história é muito semelha nte ao de Rio 2. Se, na animação de Carlos Saldanha, a arara azul macho Blue ia parar na floresta depois de ter sido criado no Rio de Janeiro, em Amazônia é o macaquinho Castanha que empreende a mesma jornada de descoberta das origens selvagens após anos de vida urbana no mesmo Rio.

Selva antropomórfica

A diferença essencial entre os dois está no grau de dificuldade: como moldar as atitudes de primatas, quadrúpedes, aves, répteis e insetos de modo a encaixá-las numa construção dramática? Como desentranhar da natureza uma dramaturgia? Como transformar, em suma, seres irracionais em personagens de uma narrativa ficcional?

São dois os recursos básicos para atingir esse fim: a locução em off (a narração em primeira pessoa por Castanha e mais os diálogos “traduzidos” da linguagem dos macacos) e os artifícios de montagem, que procuram construir uma relação virtual entre os personagens/animais utilizando seus gestos aleatórios.

Uma cobra serpenteia pelo chão de folhas. Corta para um close do macaquinho de olhos arregalados. Pronto, criou-se o drama: macaco assustado diante do avanço da cobra, ainda que a cobra possa ter sido filmada em outro dia, a quilômetros de distância do macaco. Obrigado, Griffith.

Aqui entra, decerto, a expertise do diretor Thierry Ragobert. Pois os documentários televisivos sobre vida animal são na verdade um curioso gênero ficcional, em que se constroem pequenos dramas, comédias e não raro fábulas morais ali onde só havia luta cega pela sobrevivência e pela preservação de cada espécie.

O segredo de polichinelo por trás disso tudo chama-se “antropoformização”, ou seja, a atribuição de características e sentimentos humanos a seres irracionais. É o que fazem mitos e fábulas desde que o mundo é mundo. Mas uma coisa é dizer “O macaco esperto enganou a onça malvada” e outra bem diferente é mostrar, de modo convincente, um macaco enganando uma onça, e mais ainda conferir esperteza ao primeiro e malvadeza à segunda.

Frescor e monotonia

Amazônia tem o mérito de recusar, quase o tempo todo, as facilidades da imagem digital para atingir essa proeza. Seus truques são essencialmente cinematográficos, óticos e, claro, de montagem. Isso é uma evidente virtude e, de certo modo, também uma limitação. Se, por um lado, é um alívio ver durante mais de uma hora a natureza “real” em todo o seu frescor – em vez das paisagens sintetizadas eletronicamente das aventuras infanto-juvenis à la Senhor dos anéis –, corre-se por outro lado o risco do aborrecimento e da monotonia.

Cabe, a esse propósito, uma última questão: a quem se dirige Amazônia? A linguagem verbal, o tom da locução, o tipo de humor dos diálogos, tudo isso indica que o público-alvo são as crianças e, no máximo, os pré-adolescentes. Mas a construção visual, com sua tentativa hercúlea de conduzir o olhar em meio a um cenário confuso e dispersivo ao extremo, talvez exija uma atenção e uma concentração que estão fora do alcance da maioria das crianças de hoje. Mas isso é apenas uma suposição, talvez pessimista. É preciso esperar para verificar a composição e a reação das plateias.

Faltou falar do 3-D. De modo geral, funciona bem, mas, a meu ver, é totalmente dispensável. Desde as pinturas nas cavernas, o olho humano é capaz, por si só, de conferir tridimensionalidade a uma superfície plana.

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