O gosto amargo da vitória

Séries

29.06.14

Há derrotas tão traumáticas que ganham epítetos duradouros: o “maracanazo” de 1950, a “tragédia do Sarriá” de 1982. Outras são pedagógicas – como o fiasco do futebol “moderno” de Lazaroni em 1990 – ou até terapêuticas, como a queda vertiginosa do salto alto em 1998.

Do mesmo modo, há vitórias que deixam um sabor amargo, um travo de dúvida sobre nossos méritos e possibilidades reais. Como a de ontem (28 de junho), triste e sofrida, sobre o Chile. Diante da escassez de engenho e arte mostrada no Mineirão, os mais velhos devem ter-se perguntado: “Como foi que nosso futebol chegou a um ponto tão baixo?”.

Às razões estruturais, de política econômica global, que esbocei aqui em colunas anteriores, somam-se motivos mais imediatos, conjunturais, como a falsa euforia criada com a conquista da Copa das Confederações, o escasso tempo de treinamento e preparação, a teimosia de Felipão etc. De tudo isso resulta em campo uma equipe invertebrada e sem alternativas, um futebol previsível e opaco, feito de ligação direta defesa-ataque e chuveirinhos na área “pra ver o que acontece”.

A menos que ocorra alguma mudança que tenha o efeito mágico de encaixar as peças e conferir articulação a esse aglomerado amorfo, a seleção seguirá dependendo de lampejos de Neymar, um espasmo de Hulk, um estalo de Oscar. No banco, jogadores como Hernanes e Bernard aguardam em silêncio a possibilidade de se tornar o J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história (como na “Quadrilha” de Drummond) e que acaba por defini-la.

Contra o Chile, o craque em tarde inspirada foi, sintomaticamente, o goleiro Júlio César. O fato de o mesmo Júlio César ter falhado em 2010 no gol holandês que tirou o Brasil daquela Copa, passando portanto ontem de vilão a herói, é um desses caprichos do destino (ou do acaso) que fazem do futebol um esporte fascinante mesmo quando a qualidade do jogo deixa a desejar. A fábula da queda e da redenção é uma das mais populares e perenes do futebol.

Mil palavras

Uma imagem captada ontem no Mineirão diz muito sobre os diferentes desejos e expectativas do público. Durante um dos momentos mais tensos da disputa por pênaltis, a câmera focalizou meia dúzia de pessoas na plateia. Entre alguns torcedores que roíam as unhas de apreensão, uma moça paramentada de verde e amarelo até nos cílios se viu no telão do estádio e começou a gesticular, frenética e sorridente como um boneco inflável de posto de gasolina. Para ela, e certamente para milhões de outros brasileiros, o jogo é um detalhe, um cenário, um pretexto. Para quem se acostumou a ver o futebol como uma arte sutil, um teatro social ou uma guerra simbólica, não havia motivo nenhum para festa.

Mas pelo menos para uma coisa a vitória sobre o Chile serviu (além, obviamente, da classificação para as quartas de final): enterrar de vez a folclórica teoria da conspiração segundo a qual a Copa está comprada pelo governo brasileiro. Para alguém seguir acreditando nessa bobagem, tem que achar que são todos excelentes atores dentro de campo, e que é possível, por exemplo, chutar de propósito uma bola no travessão no último minuto, como fez o chileno Pinilla. Nem em Matrix ou no “mundo de Truman” seria possível uma orquestração tão perfeita.

O craque canibal        

O grande personagem da semana que passou foi, sem dúvida, o jogador uruguaio Luis Suárez, suspenso pela Fifa por nove jogos e excluído precocemente da Copa por ter mordido o zagueiro italiano Chiellini durante a partida Uruguai x Itália. Muita gente, inclusive o próprio Chiellini – que tampouco é um príncipe dentro de campo –, considerou excessiva a punição ao atacante (em mais de um sentido) celeste.

Mas a questão não é tanto o eventual exagero do castigo, mas sim o porquê de tamanha celeuma, revolta e sanha punitiva. Suárez foi banido como um pária do futebol mundial por conta de uma mordida, algo que machuca muito menos que um chute no joelho ou uma cotovelada no rosto, golpes que muitas vezes não merecem mais do que um cartão amarelo. Por que essa diferença de tratamento?

Uma boa explicação foi dada pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S. Paulo: segundo ele, a mordida de Suarez foi chocante e desconcertante por fugir ao repertório da violência codificada do futebol (carrinho por trás, joelhada na coxa, cotovelada, cabeçada no nariz, solada no joelho, chute no tornozelo etc.) e por evocar uma selvageria ancestral, anterior a qualquer pacto de convivência.

O gesto de Suárez nos assustou por nos lembrar que, em alguma parte de nós, ainda não deixamos de ser bichos.

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