A sedução de Susan

Literatura

26.09.14

Regarding Susan Sontag, de Nancy Kates, é, ao que eu saiba, o primeiro documentário sistemático sobre aquela que foi uma das vozes mais influentes da recente história intelectual americana. Sai, ainda no circuito de festivais, quando são lembrados os dez anos de sua morte, período em que já foi publicada uma boa prateleira de livros póstumos dela e tantos outros sobre ela. Alguns deles eu mapeei no artigo Diante da memória dos outros e na Ilustríssima. Outros, como a íntegra da famosa entrevista concedida à Rolling Stone e a biografia assinada por David Schreiber (lançada na Alemanha em 2007 e agora nos EUA), estão aí para reforçar a personagem larger than life que ela mesma se esmerou em construir.

Uma boa chave para entendê-la melhor e, por tabela, para tentar entender o formato do documentário exibido no IMS no dia 23 e que terá outras sessões no Festival do Rio (com o título Sobre Susan Sontag), vem de um dos entrevistados do filme, Wayne Koestenbaum. Ensaísta afiado, especializado nos chamados queer studies, um amplo espectro de crítica LGBT, ele lembra que a personalidade de Susan Sontag é um pacote no qual inteligência, sinceridade e atitude vêm emboladas com egocentrismo, automitificação e, por que não?, um pronunciado “divismo”. Para Koestenbaum, Sontag pode ser incluída na sensibilidade que ela descreveu em um de seus mais famosos ensaios, “Notas sobre o camp”, de 1964. Muito confundido com o simplesmente kitsch, o camp pode ser tanto Carmen Miranda quanto Flash Gordon: o que marca essa forma de ver e representar o mundo é o gosto pelo excesso, artifício e exagero, propondo, como ela escreveu na Partisan Review, “uma nova e mais complexa relação com ‘o sério’” da qual os homossexuais “constituem a vanguarda – e o público mais articulado”.

Provavelmente Susan Sontag não gostaria da comparação, como ela de fato pouco gostava de qualquer comentário que saísse de seu controle e representasse divergência frontal às suas posições. Gostaria muito menos ainda do que a diretora Nancy Kates faz de seu universo de referências, usando e abusando de fusões de imagens, embaladas por música grandiloquente e mais de uma vez pontuada por inaceitáveis imagens de letrinhas que se desprendem de uma página para formar um retrato de Susan, como aquelas figuras de Jesus Cristo criadas por caracteres em impressoras matriciais. Isso é camp? Não, isso é kitsch mesmo, inapelavelmente.

Camp, isso sim, é a estratosférica pretensão de Susan mostrada em todos os seus estados, nas já conhecidas anotações dos diários, nas boas entrevistas de seus contemporâneos e intérpretes e, principalmente, em generoso material de arquivo. Sem subserviência à cronologia e, também, sem perdê-la de vista, a diretora conta uma vida que parece romance, a história da menina que odiava a mãe, lia Kant aos 15 anos, descobriu transando com mulheres que até poderia gostar de homens, foi a encarnação mais perfeita do feminismo e do movimento gay sem jamais militar por um ou outro e que percebeu, lendo os diários de André Gide, que a um escritor tudo era permitido: podia conhecer tudo, ler tudo, opinar sobre tudo, escrever sobe o que lhe desse na telha. E foi isso, efetivamente, o que fez em seus 71 anos.

Nancy Kates se ocupa corretamente da obra, mas se espalha mesmo no território que Susan Sontag desde sempre interditou: sua intimidade. Se o filho, David Rieff, e sua última e mais duradoura companheira, Annie Leibovitz, se mantêm tão reticentes quanto ela o foi, outros felizmente decidiram “traí-la”. Os depoimentos mais contundentes são os de Judith Sontag Cohen, sua irmã, Harriet Sohmers Zwerling, jornalista e uma das primeiras namoradas, e Eva Kollish, professora com quem Susan viveu alguns anos. São testemunhos que mostram a conflituada vida em família (as relações calculadamente frias e distantes), as intensas temporadas de descobertas em Paris (com Harriet, uma cena de ciúmes poderia redundar em pugilato) e o temperamento autocentrado (era frequente ignorar Eva e sequer apresentá-la quando estava em companhia de gente que considerava importante).

Nas imagens de arquivo, é possível vê-la em suas veementes entrevistas, na célebre viagem a Hanói, fazendo charme na TV francesa, discursando diante de um entediado Norman Mailer, destratando um educado jornalista ou mesmo dando uma de atriz em um filme da nouvelle vague.

Mas as cenas mais reveladoras não têm conexão aparente. Numa sequência, ela está jovem e bela, de óculos escuros, com os pés para cima de uma cadeira fazendo carão para Andy Wahrol, que procura com uma câmera de cinema um ângulo adequado. Na outra, em 2001, ela enfrenta uma bateria de entrevistadores indignados com sua intervenção depois dos atentados de 11 de setembro, quando, na New Yorker, rebelou-se contra o que via como a infantilização dos americanos diante da tragédia, lembrando o atentado como uma resposta política, ainda que injustificável, à política externa dos EUA.

Entre Wahrol e Bin Laden, Susan Sontag fez-se intelectual em seus vícios e virtudes. Tão fascinada pela própria imagem quanto pronta a intervir nas chamadas “grandes causas”, foi personagem complexa da qual o documentário dá e não dá conta. Pois ao final de seus 101 minutos parece mesmo render-se aos estratagemas de suas protagonista. O que não parece tão grave, bastando para isso voltar a se expor aos textos de Susan Sontag, aliciadores, ou aos episódios da vida que promete ser contada proximamente e de forma mais extensa por Benjamin Moser, o excelente biógrafo de Clarice Lispector.

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