Daniel Blaufuks, trabalho de memória

Cinema

20.08.13

Entre 21 e 24 de agosto, o IMS do Rio de Janeiro exibirá a mostra Trabalho de memória, com filmes do cineasta e fotógrafo português Daniel Blaufuks. Serão exibidos Sob céus estranhos(2002), Um pouco mais pequeno do que Indiana(2006) e Éden (2011), todos com a presença do artista, que no dia 24, às 17h, também participará de um debate.

Daniel Blaufuks

Uma vez conheci um homem muito viajado que guardava todos os papéis que lhe chegavam às mãos. Cartas, livros, mas também faturas, vouchers, fotografias, bilhetes de cinema e de museu, recortes de jornal e declarações de impostos. Arquivava tudo em dossiês e caixas, ano após ano. Este constituía um diário escrupuloso da sua vida, do que fazia, do que gastava, o que comia e donde, mas não incluía nenhuma nota pessoal, nenhum registro dos seus pensamentos ou sentimentos.

Este apontamento de Daniel Blaufuks pode parecer uma descrição de Álbum (2008), livro que reúne uma coleção de fragmentos, tanto de viagens como de viajar: bilhetes usados – para o Taj Mahal, para Madame Butterfly, para Joan Baez – notas manuscritas, letras de canções pop escritas à máquina, frentes e versos de fotografias, um trevo de quatro folhas, embalagens de fotografias, negativos a cores, frentes e versos de envelopes, recibos, postais etc. Tal como a maior parte do trabalho de Blaufuks, o livro fala de limites, do quanto pode ser dito sobre a experiência através de pormenores e vestígios, que resíduos de uma vida poderão perdurar. É disto que se faz um arquivo. Apenas o sistema de ordenação e catalogação associados ao arquivo é disposto contra o sinuoso deambular associativo que os fragmentos põem em movimento. O arquivo é sobre a administração das coisas e das vidas, sobre uma fidelidade aos fatos, um positivismo desafiado pelo trabalho poético e evocativo de Blaufuks. No seu belo e comovente filme Sob céus estranhos (2002), Blaufuks aborda a experiência de refugiados dos seus avós, judeus alemães que fugiram da Alemanha Nazista para se instalarem em Lisboa em 1936. Blaufuks cresceu no quinto andar do mesmo edifício onde viviam os seus avós e no filme evoca vestígios das suas experiências através de testemunhos, histórias, filmes, fotografias, documentos, vistos e cartas pessoais. É uma resposta emotiva a material afetivo, uma história sobre deslocação, perda, medo, amor, exílio forçado e o desejo de encontrar um sentimento de pertença.

Em Álbum, pormenores dos vistos de entrada e saída num passaporte e o bilhete de identidade de refugiado ligam as características deste livro à experiência do exílio. Em muitos sentidos, Álbum é sobre o viajar, sobre o não ter lugar, sobre o movimento das cartas e das lembranças de viagens: um cinzeiro de Jerusalém, a coleção de slides estilo suvenir dos lugares sagrados, o verso de uma carta com o endereço que nos diz de onde foi enviada – Tânger, Marrocos, e temos inclusive um postal em 3D das Torres Gêmeas, que agora toca num ponto sensível e bastante desagradável.

Não existe fotografia propriamente dita em Álbum, as fotografias surgem como imagens e tudo é apresentado sob a forma de reproduções fotográficas, como objetos materiais planos dispostos e copiados a cores contra o branco das páginas. Álbum descreve uma vida através de pormenores. Mas a vida de quem? Que o destinatário de muitas das cartas e notas seja Daniel Blaufuks pode levar-nos a pensar que todas estas coisas têm a ver com o autor, constituindo uma espécie de autorretrato, mas tal como o homem muito viajado do excerto inicial, não há registros dos seus pensamentos ou sentimentos. A subjetividade é mantida sob controle.

O livro, no entanto, é sobre uma relação afetiva com as coisas – este material é valioso e estimado. O pequeno bilhete amarrotado é uma recordação de uma experiência para além da descrição. Cada artefato é um pequeno lembrete ou deixa para outra coisa, para algo mais importante. O uso e a textura do uso são aqui importantes, as coisas retratadas nunca estão por usar, nunca são novas em folha. A muito do material é dado um certo aspecto histórico, até a memória do computador na última página do livro recebe uma pátina estranha e bastante antiquada.

Daniel Blaufuks

A relação da memória com a fotografia e com o filme é fundamental em muitas das obras de Blaufuks. Uma das páginas de Álbum mostra uma embalagem de películas que diz Memories fade, your pictures shouldn’t e no seu livro de textos, The Archive, Blaufuks inclui uma citação de John Berger que diz “Todas as fotografias existem para nos recordarem o que esquecemos.” Perante Álbum somos convidados a recordar. Tal como as coisas copiadas e preservadas podem estar ligadas à vida do artista, o que significam para nós é fundamental, elas constituem estímulos para as nossas memórias e associações. Cabe a nós fazer o trabalho de recordar.

Por oposição, o trabalho em vídeo Now Remember (2008) convida seus participantes a falarem sozinhos para uma câmara estática durante 15 minutos com a indicação de que devem falar do que se lembram. São eles que fazem o trabalho de recordar. Num certo, sentido os vídeos lidam com o gênero do retrato. Isto é emocional e levemente voyeurista para o espectador, um encontro com estranhos através da forma íntima e tecnológica do iPod usado para a sua exibição. Now Remember inspira-se nos Screen Tests, de Andy Warhol, onde os participantes foram deixados sozinhos em frente a uma câmara. Os Screen Tests são mudos, ligeiramente desacelerados e em preto e branco. Os vídeos de Blaufuks são comparativamente toscos e rudimentares, as técnicas de produção são primárias e grosseiras e não há recurso ao erotismo do rosto, uma característica determinante dos filmes de Warhol. E ao contrário dos protagonistas de Warhol, a quem é dito para apenas permanecerem sentados em frente à câmera, aos protagonistas de Blaufuks é dado algo para fazer. Têm uma tarefa.

Suas revelações sobre o que constitui uma vida estão ligadas à propensão arquivista desta obra com tantos pormenores. Imersos nas recordações de outras pessoas, deveríamos começar a questionar se o vídeo é sobre a empatia ou a diferença. A premissa humanista do que nos é comum e do que nos une a todos começa a esclarecer-se neste trabalho. Estes vídeos não chegam a ser confessionais, apesar de parecerem sê-lo quando uma mulher conta à câmera (e a nós) um aborto que fez. Os vídeos, em muitos sentidos, são sobre que acontecimentos são importantes – lugares visitados, acontecimentos da infância, família, amigos, os prazeres e também as mágoas da experiência. Blaufuks não sabia o que poderia ser desenterrado neste processo. Podemos assumir que esta obra é sobre ser humano, sobre o que podemos ter em comum. Mas há algo acerca dos pormenores, acerca da acumulação de informação que temos que começa a constituir um documento de um gênero completamente diferente, por muito que possamos rever-nos em algumas das recordações, outras são mais impressionantes e cruas – “lembro-me da gota isolada de sangue no sofá no dia que o meu amigo Ray se disparou na cabeça”. Cumulativamente, os pormenores descrevem outra coisa, a estranheza destas vidas de outras pessoas.

O que é recordado aqui está relacionado com a sucessão de pormenores preservados em Álbum, vestígios de memória que simplesmente se acumulam, uns após os outros, mas que não seguem uma narrativa ou estrutura clara. Tanto Now Remember como Álbum são sobre a textura das vidas vistas através dos pormenores.

No seu vídeo Perfect Day, Blaufuks lida não com os pormenores, mas com o estereótipo e o genérico, a uniformidade geral das formas de representação massificada, os clichês piegas de uma sucessão de ensolarados postais ilustrados de montanhas, lagos, hotéis e cidades. A repetição desta imagética ideal e perfeita faz sobressair o seu artifício e a sua falsidade. A famosa canção de Lou Reed, Perfect Day, é montada em contínuo para proporcionar uma banda sonora elegíaca e lúgubre ao vídeo. O projeto foi concebido e exibido em Nova York depois do 11 de Setembro, o que de acordo com testemunhas foi um dia mesmo perfeito.

Daniel Blaufuks

É em termos do ideal e do trauma que Blaufuks realizou uma obra que se debruça sobre o Holocausto. No filme Terezin, Blaufuks pinta de vermelho e desacelera fragmentos de filmagens que os nazistas fizeram no gueto de Theresienstadt, hoje chamado Terezín. Trata-se de um filme de propaganda que disfarça a horrenda realidade do campo de concentração, feito durante uma visita da comissão da Cruz Vermelha quando o campo tinha sido submetido a um programa de limpeza. Blaufuks está fascinado com a falsidade deste filme. A transformação que faz dos fragmentos inspira-se num romance de W. G. Sebald, Austerlitz, onde a personagem principal referida no título conta ao narrador a sua obsessão com este filme, desacelerando-o para tentar ver se consegue encontrar uma imagem da mãe, que ele acredita ter morrido nesse campo. Depois do documento ter sido alongado até ter quatro vezes a duração inicial, revelou pessoas e objetos que antes estavam escondidos e criou um filme completamente diferente, mais perto dos horrores dos campos que o Reich encobria – um mundo lúgubre, grotesco, e de pesadelo, no qual “os homens e as mulheres empregados nas oficinas pareciam estar agora como se estivessem num sonho, de tanto tempo levarem a fazer deslizar a linha e a agulha enquanto cosiam, de tão pesadas serem as suas pálpebras e de tão lentamente se moverem os seus lábios enquanto olhavam penosamente para cima em direção à câmara.”

A ligação com Sebald vem do fascínio de Blaufuks com uma fotografia perturbante em Austerlitz, uma das muitas fotografias dispersas pela narrativa, que dão um certo peso factual e histórico à ficção. A fotografia mostra uma sala cheia de prateleiras até ao teto onde se guardavam as pastas de arquivo dos prisioneiros do campo de concentração de Theresienstadt. Blaufuks foi a Terezín e tirou a sua própria fotografia da sala, fechada por uma porta de vidro, que hoje faz parte do pequeno museu onde antes era a prisão. Blaufuks conta-nos como inicialmente viu a fotografia no livro de Sebald “como uma metáfora de seu próprio trabalho”. Enquanto fotografia de um arquivo podemos ver a relação que tem com a sua própria arte, a sua própria obsessão com o material de arquivo, os fragmentos e vestígios de vidas, com a sua própria família e com as pessoas, jovens e idosas, que ele grava para Now Remember. Também relaciona o arquivo com a “Solução Final” nazista. E é em relação ao Holocausto que começamos a compreender verdadeiramente a importância e a relevância da memória na arte característica, comovedora e inquietante de Blaufuks.

* Mark Durden é professor de fotografia na Newport School of Art, Media and Design, da University of Wales (Reino Unido).

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