Cinquenta anos de Vidas

Cinema

21.08.13

Cena do filme “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos

Quinta-feira, 22 de agosto de 1963: Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos estreava no Rio de Janeiro, no circuito dos cinemas Metro, recebido com um entusiasmo que se traduz com perfeição no comentário de Otto Lara Resende: “Saio de Vidas secas com a convicção de que esse filme, sozinho, funda e justifica uma nação. O Brasil está, enfim, descoberto. E o Nordeste passa a ser um problema na consciência universal. É uma obra-prima”.

É verdade, nem todas as reações da imprensa foram igualmente favoráveis: no Correio da Manhã, Antônio Moniz Viana (22 de agosto) viu “honestidade sem imaginação, tributo e não transfiguração. A homenagem funciona, o filme existe sem brilho, mais pelo reflexo de um bom romance (…) Nelson Pereira dos Santos estaciona ao nível do artesanato, não ousando ir mais longe”. No O Jornal, o veterano Pedro Lima encontrou muitas falhas no filme, “vale como documentário”. E, lembra Helena Salem no livro O sonho possível do cinema brasileiro, “o jornalista Carlos Heitor Cony, em sua coluna “Da arte de falar mal”, no Correio da Manhã, afirmou que sequer conseguiu assistir até o fim (“não suportei o filme”).

Mas prevaleceu o entusiasmo: na Tribuna da Imprensa, Ely Azeredo publica uma série de quatro críticas (25, 27, 28 e 29 de agosto) : “Concentrado e áspero, mas ao mesmo tempo banhado de poesia e aberto à comunhão de todas as sensibilidades. O tempo talvez o consagre como a primeira obra-prima do cinema brasileiro. Não estamos ante uma adaptação comum e, muito menos, ante uma tradução servil do texto literário à linguagem cinematográfica (…) Nas raras ocasiões em que se afasta do conteúdo do texto, Nelson o faz a partir de sugestões que podem ser encontradas nele”.

No Jornal do Brasil (26 de agosto), José Carlos de Oliveira observa que a câmera, “com toda humildade, se dedica a reconstituir, passo a passo, a existência de cinco pessoas. Tudo é triste e pobre, brasileiramente triste. Nelson Pereira dos Santos mostra o que realmente é: um artista ilustre, um homem digno (…) Quando as luzes se acendem, sobre a desolada última cena, todas as consciências estão intranquilas. Vejam: eles não pedem nada demais. Não querem as nossas fazendas, nem os nossos apartamentos, nem o nosso dinheiro, nem a nossa fé, nem a nossa liberdade. O que eles querem é apenas uma cama de couro, uma sombrinha, um vestido estampado, um par de sapatos, comida e água. O nosso futuro está ameaçado na razão direta da nossa incapacidade de satisfazer essas necessidades mínimas”.

Em outubro, na estreia em Belo Horizonte, Claudio Mello e Souza, no Estado de Minas (20 de outubro), vê no filme de Nelson “mais que o melhor filme nacional: é o fundador de uma linguagem brasileira de cinema. Com Vidas secas passamos ter um verdadeiro, e por isso mesmo novo, cinema nacional”. Também em outubro, em Porto Alegre, Hiron Cardoso Goidanich, o Goida, saudava o filme em Última Hora (18 de outubro): “a secura das imagens, a pobreza da ação, a monotonia do desenvolvimento argumental nos são apresentados de uma forma nova, uma linguagem de cinema que não conhecera similares ainda no Brasil — quiçá no mundo. O filme nos toma de assalto e dificilmente podemos afastar dele nossa lembrança o resto da vida. O filme é um todo uniforme, onde não está sobrando esta ou aquela cena. Tudo é importante, tudo tem seu lugar certo, tudo funciona para nos atrair à tela ao problema do Nordeste, o texto de Graciliano e a arte visual criada por Nelson Pereira dos Santos”.

Logo depois chegava às livrarias Revisão crítica do cinema brasileiro, livro em que Glauber aponta Vidas secas como “o verdadeiro começo da obra de Nelson” e o diretor como “um dos intelectuais mais sérios de sua geração. A mais fértil, madura e corajosa mentalidade do cinema brasileiro”.

Cena do filme “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos

Nelson já tinha retornado ao jornalismo, trabalhava como redator no Jornal do Brasil quando Vidas secas estreou em São Paulo, poucos dias antes de sua exibição no Festival de Cannes. Na Folha de S. Paulo (9 de maio de 1964) Benedito J. Duarte comentava: “Tristão de Ataíde, numa de suas crônicas para este jornal, depois de haver assistido a Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, confessa que jamais poderia supor algum êxito na transposição do livro de Graciliano Ramos para as imagens do cinema. Como acreditar na versão cinematográfica brasileira desse Machado de Assis do sertão, seco como uma queimada de agosto, com seu intencional estrangulamento emotivo e despojamento paisagístico?” — indaga Tristão de Ataíde, justificadamente assombrado.

E, realmente, essa adaptação tão fiel ao espírito tão austero da obra literária pura, difícil entre todas de qualquer tradução, seja para outro idioma, seja para a linguagem do cinema, constitui a grande surpresa e o enorme mérito desse filme, um dos mais importantes já realizados em toda a nossa atribulada história cinematográfica (…) Há sequências em Vidas secas que se tornarão inesquecíveis como criação cinematográfica, como documento social, como um terrível e pungente depoimento, sobre que, agora, deverão meditar, com seriedade, os homens da política, da administração, da sociedade brasileira”.

Maio de 1964: em Cannes, Vidas secas recebe o Prix Cinémas d’Art et d’Essai, do júri da associação francesa de cinemas de arte, o prêmio do júri do Office Catholique Internacional du Cinéma e o Prêmio de Meilleur Film pour la Jeunesse, do júri de estudantes secundários e universitários. Em entrevista para o Caderno B do Jornal do Brasil, o escritor Ricardo Ramos, filho de Graciliano, comenta as premiações e destaca a fotografia como o ponto alto do filme: “com os implacáveis contrastes preto-branco, caracterizou muito bem a paisagem agreste nordestina”.

Maio de 2004, mais uma vez no Festival de Cannes: no debate com os jornalistas depois da projeção de Nossa música / Notre musique, perguntado sobre seus primeiros filmes e a revolução dos novos cinemas da década de 1960, Jean-Luc Godard disse que a maior parte dos filmes daquele período envelheceram, e vistos hoje não mostram mais o vigor de outrora. Raros permanecem novos. Um desses raros, apontou, é Vidas secas.

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