A água e os sonhos

Cinema

01.06.14

Esta nota critica de Ismail Xavier é um dos textos que integram o livreto que acompanha o DVD de Elena. O livreto contém ainda um depoimento de Petra Costa, Pecado original, e textos de João Moreira Salles, Carlos Alberto de Mattos, Miguel Pereira e Quelany Vicente. O DVD está à venda na Loja do IMS. Neste domingo, 1º de junho, às 16h30, há uma exibição do longa no IMS-RJ.

Retrato de Elena, irmã da diretora Petra Costa

Olhos de ressaca, curta-metragem de Petra Costa, traz no título referido a Capitu a metáfora que aproxima o desejo, o feminino e o movimento das águas tão presente em Elena. Na ressaca, o mar está agitado, ameaçador e, ao mesmo tempo, tem um forte poder de atração, tal como esses olhos que a imagem do escritor identifica com ardilosa sedução. O que me impressionou em Elena foi, no plano formal, a relação tão forte do feminino com o motivo das águas. Há uma constante liquefação de quase tudo, digo “quase” porque deste processo está excluída a figura central que a voz de Petra define como a memória inconsolável de Elena que é pedra, aquilo que jamais irá se dissolver. Um movimento notável no filme é esse desejo narcísico de identidade com Elena, desejo marcado pelo trauma da morte da irmã que se suicidou quando Petra tinha sete anos. Esta é uma relação muito delicada que o filme trabalha de forma expressiva na constelação de motivos que o impulsiona, algo que está no cerne do desafio enfrentado pela cineasta ao realizá-lo. Ou seja, o confronto com a pulsão de morte que está lá implicada em sua malha poética que sinaliza esse processo de identificação que Petra tem de trabalhar, para superá-lo, e que sintomaticamente se traduz em sua estrutura poética feita de repetições, de vais e vens no tempo.

O tratamento da luz e da imagem desfocada, em que somente um detalhe resta nítido, tem especial efeito nessa travessia, seja nas cenas ensolaradas, seja nas cenas noturnas. A irradiação e os reflexos muito fortes criam efeito semelhante à experiência que se tem quando raios são refratados na passagem do ar para água e criam espectros variados, essa iridescência reiterada numa quantidade enorme de imagens relacionadas com esse senso de liquefação já comentado. Figuras da fusão dos corpos, ambíguas, instáveis, se ligam às vezes à nossa dúvida diante de um rosto – é Petra ou Elena? – que tem a ver com o desejo de identidade, decisivo na relação de Petra com a irmã. Estes são motivos que dominam a construção formal.

No plano temático, o motivo do suicídio ganha tradução na iconografia e nas citações emblemáticas, como é o caso de outra personagem célebre, Ofélia, que Petra interpretou em uma experiência de teatro universitário. Ao trazer a personagem de Shakespeare para o filme, ela atualiza a iconografia melancólica consagrada pelo quadro de John Everett Millais, um dos destacados pintores do grupo dos Pré-rafaelitas, no século XIX. As flores, acopladas ao feminino e ao corpo inerte embalado pelas águas, compõem um motivo visual forte em Elena, um dos vetores de uma coerência poética que perpassa todo o filme.

Em contrapartida, o lado afirmativo da vida habita as memórias de infância e adolescência, marcadas pelo mundo da dança, pelo senso de posse integrativa do corpo trazido pelo prazer performativo que retorna com muita força ao final, sinalizando a promessa de superação implicada na realização do filme, após a travessia que em que a cineasta lidou com uma densa rede de memórias em parte apoiada por uma expressiva documentação visual típica ao gênero do “filme de família”, importante na história do cinema, de que Elena vem se apropriar com originalidade.

Existe na experiência em foco uma cronologia, mas do ponto de vista de imagem, de som, de música, de voz, de temas, o jogo não é cronológico. Valem as referencias subjetivas, as ondas de memória que elaboram a dor que sempre retorna, porém transformada para que nem tudo se reduza a um processo de repetição ligado ao trauma. A tensão repetição-superação mobiliza o espectador que aí se projeta e refaz um percurso próprio de relações referidas às suas experiências, pois o trabalho de roteiro (com Carolina Ziskind) e realização afirma um movimento em que as metáforas visuais atualizam um imaginário que não é singular ou pessoal em demasia, como bem se pode observar na leitura do ensaio de Gaston Bachelard A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria, que traz sua reflexão sobre motivos que reencontramos no teor da experiência das irmãs tal como recriada por Petra, que soube transfigurá-la, para melhor partilhá-la, dado essencial para o alcance estético e cultural do filme.

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