A ruptura do realismo em duas frentes

No cinema

27.05.16

Dois filmes brasileiros que estão entrando em cartaz buscam romper, por caminhos bem diferentes, os limites do realismo que tem marcado nossa produção cinematográfica recente. Falo do gaúcho Ponto zero, de José Pedro Goulart, e do paulista Uma noite em Sampa, de Ugo Giorgetti.

Ponto zero é quase um filme dividido em dois. Na primeira metade, trata-se da crônica de uma família de classe média em desintegração (a família, não a classe), vista pelos olhos de Enio (Sandro Aliprandini), um adolescente solitário, lacônico e taciturno. A partir mais ou menos da metade da narrativa, é como se entrássemos no imaginário perturbado do garoto, numa atmosfera de delírio e pesadelo.

Nessa família ao mesmo tempo tradicional e disfuncional, o pai (Eucir de Souza) é um radialista cínico e machista, que vive traindo a mulher (Patricia Selonk), uma “Amélia” sofredora e depressiva. Há também uma irmã um pouco mais velha, cujas amigas em flor mexem com os hormônios em ebulição de Enio.

Mas não é tanto a história que importa, mas a maneira como o filme constrói o mundo a partir do ponto de vista do garoto protagonista. Desde o início, o diretor mostra que sua narrativa é pensada cinematograficamente, e não mera ilustração de um enredo pré-existente. Imagens do espaço sideral, fundidas depois com um mergulho vertiginoso numa piscina, visto de dentro da água, sobrepõem-se a um diálogo em off do radialista com um ouvinte. O sentido dramático desse diálogo será esclarecido ao longo da narrativa, na qual o elemento água desempenhará sempre um papel crucial.

Corpo frágil, mundo hostil

Se há um reparo a fazer é ao tempo e à atenção dedicados nessa primeira parte aos detalhes um tanto redundantes da desagregação familiar, que a rigor não deixa de ser um drama banal. O filme cresce quando se concentra nesse garoto enigmático, silencioso, aparentemente impenetrável. Na observação do entrechoque de seu corpo frágil e desajeitado com um  mundo hostil, o olhar generoso do diretor lembra filmes de Gus Van Sant como Elefante Paranoid Park.

Há, nessa parte, pelo menos uma sequência digna de antologia: Enio trafegando de bicicleta pelos ambientes todos de sua vida: os cômodos da casa, os corredores do colégio, a rádio onde o pai trabalha, o quarto em que dois jovens fazem sexo etc. Um momento em que o desejo triunfa sobre o real doloroso e opressivo.

Na segunda parte, vira a chave. O desejo se transmuta em pesadelo numa longa jornada noturna sob a chuva pelas ruas de Porto Alegre, de carro, de ônibus e a pé. A câmera se torna instável; a montagem, febril; o espaço, incerto, com as distâncias cada vez mais ilógicas, incongruentes. A imagem se distorce por conta da chuva, dos vidros embaçados, dos enquadramentos oblíquos, da luz artificial cambiante. Há um pouco do clima opressivo de Depois de horas, de Scorsese, só que sem o humor. Uma longa viagem noite adentro, rumo ao coração da loucura, do medo, da solidão.

Há muita força (e talvez alguma afetação estética) nesse bloco narrativo, sustentado por uma atuação impressionante do jovem protagonista, mas também por um trabalho notável de fotografia, montagem e música, tudo concatenado organicamente pela direção segura de Goulart, nessa sua estreia tardia no longa-metragem, depois de uma sólida carreira em curtas e na publicidade. Tomara que ele pegue o embalo e faça outros.

Uma noite em Sampa

O novo filme de Ugo Giorgetti, por sua vez, parece ter como chave o teatro do absurdo de Beckett e Ionesco, misturado com o surrealismo de Luis Buñuel. Não por acaso, uma referência explícita é O anjo exterminador. Se no filme de Buñuel um grupo de aristocratas e burgueses não consegue deixar a mansão de um deles depois de um jantar, aqui um grupo de turistas não consegue entrar no ônibus da excursão depois de assistir a uma peça de teatro em São Paulo.

Toda a ação (ou falta dela) se desenvolverá numa área delimitada da cidade, entre o teatro em questão e um pequeno belvedere debruçado sobre a metrópole, no bairro do Bixiga. Já as primeiras imagens mostram que a abordagem transita entre o realismo e a alegoria. Diálogos perfeitamente naturais (“Onde se meteu esse motorista?”) e ações estritamente lógicas (tentar abrir a porta do ônibus, pedir ajuda a alguém, abordar o ator da peça que deixa o teatro) convivem com um detalhe perturbador: alguns dos personagens são manequins, embora os outros conversem com eles e os chamem pelos nomes.

É o alongamento inverossímil da situação, o sentimento de paralisia e impotência (como no filme de Buñuel ou no conto “A autoestrada do sul”, de Cortázar), que transporta a narrativa para outro terreno, o do sonho, do símbolo ou da alegoria.

A cidade ausente

Cidadãos de classe média e meia-idade (e que pagam meia entrada, segundo a fala sarcástica do ator Otávio Augusto, no papel de si mesmo), em sua maioria antigos moradores de São Paulo que deixaram a cidade em busca de “qualidade de vida” e retornam a ela para um programa cultural, veem-se de repente aprisionados ao ar livre e ao relento. A cidade à sua volta é um espaço escuro e pulsante de ameaças.

Um par de maconheiros, um grupo de sem-teto em torno de uma fogueira, um carro de polícia que passa a toda velocidade, um interfone de prédio residencial que só emite ruídos de estática em resposta aos apelos dos excursionistas, orelhões silenciados pelo vandalismo… A cidade é um território inóspito de onde os personagens querem fugir.

Se em alguns filmes anteriores de Giorgetti, como FestaBoleirosO príncipe Cara ou coroa, havia um tanto de calor humano e personagens com os quais o espectador pudesse se identificar, aqui ele parece destilar e depurar o que a pesquisadora e jornalista Rosane Pavam chamou de “humor frio” em seu livro sobre ele, O cineasta historiador. O retrato que o artista apresenta de sua classe social e de sua cidade é quase um réquiem, mas do qual não estão ausentes, de modo algum, a inteligência e a poesia.

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