Brasileiro e carioca

Por dentro do acervo

02.06.14

Esta crônica foi publicada na edição de 8 de junho de 1974 da revista Manchete. Paulo Mendes Campos a escreveu para homenagear o crítico e pesquisador Lúcio Rangel, que completava 60 anos. O IMS lançou nova edição de Sambistas e chorões, um dos livros mais importantes de Lúcio.

Lúcio Rangel (à direita) com Paulo Mendes Campos (ao centro) e outro amigo

Já se disse que a fama é uma série de mal-entendidos em torno de um nome. Em torno de Lúcio Rangel foi tecido um cipoal de anedotas que esconde sua verdadeira imagem. As anedotas também contam, mas não contam tudo. Eu que as conheço, que participei de muitas, aprendi a admirar outras faces do amigo que agora faz 60 anos: o leitor meticuloso, o amante do livro bonito, o brasileiro esfomeado por todas as formas de nossa cultura, o grande intuitivo, o intransigente defensor do genuíno popular, o sentimental que chora pelos que se vão, o tímido Lúcio, o lúcido Lúcio, o sofrido Lúcio.

Há alguns anos tentei captar numa “Letra de choro para Lúcio Rangel” uma das suas dimensões, o espaço-tempo carioca. Peço licença para tocar essa musiquinha:

Um choro explica toda a minha vida,
a que vivi e a que senti ouvida,
relembra meu futuro entrelaçado
no Rio do presente mas passado,
jarras ansiosas nas janelas
até que novas flores morem nelas,
bondes unindo o triste ao paraíso
de um beijo, de um abraço, de um sorriso,
tranças que se destrançam por um nada
se um anjo pula corda na calçada,
namorados dançando o ritual
do fogo na moldura do portal,
Copacabana doida a palpitar
de peixes de arrastão, a se excitar
na corola despida que se dá
ao mar, ao céu, ao sol, ao deus-dará,
contraponto de estrelas no Alcazar,
zíngaros no Alvear a flutuar,
borboletas bem feitas nas esquinas
do mar, onde se queimam as ondinas,
mariposas morenas pelas ruas
(de colo ebúrneo ao ficarem nuas), corcéis
de ilusões acumuladas
nas reuniões do Derby, desgarradas em
longínquo tropel que se faz mito
nos prados invisíveis do infinito,
o calor que chovia em Realengo
o ir e vir do estio no Flamengo,
velas brancas dos barcos da baía,
Cosme Velho ao ver passar Joaquim Maria
com flores e pudor, na vespertina
nostalgia de dona Carolina,
doce frondosa avó de Cascadura
deitando pelo chão sombra madura,
bulevares do Norte com jasmins
modestos nos chalés, ternos jardins
suspensos na lembrança azul da Quinta
Boa Vista na década de trinta,
volutas femininas, capitéis
de luz que se derramam nos vergéis,
além com seus redondos horizontes
as ilhas do poeta sem as pontes,
o subúrbio, clave da cidade,
Cavalcante, Encantado, Piedade,
Olaria do mago Pixinguinha,
Engenho Novo, Engenho da Rainha,
Boca do Mato, Cordovil, Caju,
Ramos, Rio Comprido, Grajaú,
percussão dos barracos de Mangueira,
batucada de bamba em Catumbi,
serestas ao luar de Andaraí,
Praça Onze, convés do marinheiro,
Versalhes da rainha do Salgueiro,
o pandeiro de Paulo da Portela,
os tamborins descalços da favela,
Vila Isabel com seus oitis franjados,
recreio dos pardais sobre os telhados
imperiais de São Cristóvão, cânticos
emudecidos de barões românticos,
degraus da escadaria alabastrina
dando acesso à Pensão Dona Corina,
doçura da mangueira suburbana
a dar sombra do céu virgiliana,
ternura da cozinha das Gamboas
de nossa vida, leitoas
gentis, siris sutis, viris peixadas,
angelical langor das feijoadas,
manacás da Tijuca, quaresmeiras
da Gávea, do Joá, caramboleiras
das chácaras dolentes do poente,
cajueiros das praias do nascente,
palacetes florais de Botafogo,
olhando a multidão depois do jogo
de futebol naquele antigamente
que pode ser passado e ser presente,
sambistas estivais do Café Nice,
meiguice da Lallet, linda meiguice,
o sorveteiro singrando pelo Rio
na popa de comando do navio,
a bailar como as plumas do coqueiro,
ave-do-paraíso, o vassoureiro,
violões enluarados nos pomares,
veludos de formosos lupanares
na Lapa dos simpósios de piano
de Ovalle, Villa, dom chopiniano
das decaídas, lindas decaídas
(musicalíssimas mulheres, vidas
paralelas aos reposteiros graves
das pensões respeitosas e suaves),
céus mestiços de junho, céus vibrantes
de abril deitando anil sobre os amantes,
e a melodia segue espiralada
pela noite da alma arrebatada
em caracóis de anelos, refrações
do coração, meandros, digressões
do sentimento, viravoltas puras,
labirintos de amor, arquiteturas
de André, Jacó, Luperce e Honorino,
Lacerda, Pernambuco e Severino,
Zequinha, Dilermando e Biliano,
Radamés, Eduardo, Americano,
e enfim no choro astral do grande Alfredo,
segredo – é claro – aqui tudo é segredo.

Os dois últimos versos falam de quem estaria de coração aberto na homenagem a Lúcio Rangel – Pixinguinha – e que seria recebido de lágrimas nos olhos.

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