A estudante Yasmin Ferreira, que passou um ano ouvindo cantadas de um porteiro
Em uma tarde qualquer no Rio de Janeiro, o funcionário de um prédio na rua Raul Pompeia, em Copacabana, resolve passar mais uma cantada na garota bonitinha que anda pela calçada. Mas, naquela terça-feira de junho, Yasmin Ferreira não estava disposta a ouvir piadinha. Coincidentemente, a repórter Cléo Guimarães, de O Globo, andava ali à procura de uma pauta. O episódio rendeu um vídeo que merece ser lido à luz de debates recentes sobre o direito feminino de não ouvir cantadas de rua, colocado por campanhas como a Chega de Fiu–Fiu, promovida pelo site feminista Think Olga.
O conflito entre a estudante de direito de 21 anos e o porteiro foi amplamente comentado e expõe os limites da discussão feminista feita sem diálogo ou empatia por questões raciais e sociais. Em um vídeo de um minuto e meio, Yasmin usa quase dez marcadores de classe: “por causa de um porteiro”, “moro aqui”, “local de trabalho”, “moradora do posto 6”, “vai tomar uma multa”, “vai perder teu emprego”, “no lugar de trabalho não se faz isso” etc. A palavra “porteiro” é repetida ad nauseam, com entonação de ultraje. No discurso da jovem, não é possível substituir “porteiro” por “homem”. Há uns anos, daria para substituir por “preto”. Talvez ainda dê para substituir por “pé-rapado”.
A questão da cantada de rua como vem sendo abordada no Brasil, no âmbito de um feminismo branco e de classe média, subvaloriza a articulação das diversas formas de opressão que se manifestam no gesto de assediar uma mulher em público. Não à toa, muitas das mulheres que reclamam das cantadas – e que estão corretas em sua avaliação de que elas frequentemente representam uma tentativa conservadora de lhes mostrar seu lugar – não hesitam em associá-las a profissões específicas. Fala-se, por exemplo, em cantada de pedreiro, em cantada de taxista. Para esse feminismo, as ruas seriam mais civilizadas se houvesse um apagamento da tensão sexual no ambiente urbano. A luta não é por direitos iguais na hora de expressar o desejo ou para que se reconheça o elemento opressor que costuma estar presente nessas abordagens. A reivindicação é por assepsia, é para que as mulheres possam circular pelo espaço público sem serem incomodadas pelo desejo alheio. O desejo delas se dá apenas negativamente: é um desejo de invisibilidade social, de não ouvir o outro. Sentem-se injustiçadas por não usfruírem do privilégio de seus pares, os homens de classe média, de poderem andar pelas ruas sem serem confrontados com a existência do outro.
O argumento de que a cantada de rua seria violenta por se dar em um ambiente inapropriado, com métodos e palavras erradas, soa capenga se pensarmos que dentro da organização social brasileira não há ambiente, palavra ou método de abordagem que torne o desejo de um homem pobre e negro por uma mulher branca e rica algo que possa ser exposto em público sem causar atrito. O corpo da mulher branca é uma das propriedades mais valiosas à ordem social brasileira e seu uso precisa ser exclusivo dos homens brancos. Indício disso é nossa miscigenação baseada em relações nem sempre consensuais entre homens brancos e mulheres negras, não em relações entre homens negros e mulheres brancas. É até difícil pensar em ambientes propícios ao enlace sexual que sejam frequentados em pé de igualdade por pessoas com perfis tão diferentes quanto Yasmin e o porteiro.
Uma das modalidades da cantada de rua tipicamente brasileira – aquela que parte de um homem negro e pobre em direção a uma mulher branca e rica – tem menos a ver com a expectativa de estabelecer um enlace sexual e mais a ver com uma disputa acirrada entre dois privilégios. A cantada é a concretização bruta de um conflito social que permeia boa parte de nossas relações cotidianas com pessoas de outros grupos. Através dela, o porteiro rompe a condição de esterilidade e invisibilidade social que lhe é imposta, atacando o lado fraco do status quo [ou seja, a mulher do branco, a mulher do rico] e deixando claro para ela que, mesmo porteiro, ele permanece homem. Diante da humilhação de classe que sofre constantemente ao ser visto como porteiro e não como pessoa, o porteiro oferece sua melhor cartada: sou homem. A estudante, diante da humilhação de ser vista como objeto decorativo e não como pessoa, rebate: sou moradora do posto 6, não sou para o seu bico.
É sintomático que, embora reconheça o que sofreu como uma violência, a moça não pense em chamar a polícia nem mencione os direitos da mulher, a equidade de gênero. Ela pensa é em chamar a patroa e fala em respeitar o local de trabalho. Igualmente sintomático é o fato de que no âmbito do discurso racional, argumentativo, só a estudante tenha vez. Ao longo do vídeo, só ela fala, o porteiro no máximo ameaça interromper. Depois da confusão, a repórter de O Globo captura o depoimento da moça, que ganha nome e endereço. Talvez o porteiro tenha preferido não dar sua versão, mas fato é que o jornal não achou necessário explicar a ausência do “outro lado”. O próprio nome da coluna de O Globo onde o vídeo foi postado oferece uma explicação para a ausência do lado do porteiro: trata-se do blog “Gente Boa – Comportamento e muita informação na mais festeira e carioca das colunas”. Trata-se de uma coluna que, como Yasmin, não é para o bico do porteiro.
No fim, o diálogo inteiro poderia ser substituído por dois argumentos de autoridade que estamos longe de superar:
– Tenho um pinto.
– Moro na Francisco Sá.
Juliana Cunha é redatora do IMS.