Dois filmes brasileiros muito fortes estão entrando em cartaz: Big Jato, de Cláudio Assis, e Trago comigo, de Tata Amaral. O que eles têm em comum, a despeito de suas diferenças radicais, é o fato de lidarem com a memória como tema e como elemento de construção narrativa.
Sobre Big Jato escrevi aqui quando foi premiado no festival de Brasília do ano passado, e acrescento pouca coisa no final deste texto. Vamos então a Trago comigo.
O assunto, grosso modo, é a ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Mais especificamente, a brutalidade da repressão aos que se opunham a ela nos chamados “anos de chumbo” (final da década de 60, início da de 70). Dito assim, soa um tanto déjà-vu. Mas é aí que o filme dá mais uma volta no parafuso, ganhando em contundência política e relevância estética.
Olhar indireto
O crítico (e hoje ator) Jean-Claude Bernardet disse uma vez que a única maneira aceitável de tratar ficcionalmente o período da ditadura é lançando mão de um olhar indireto ou paródico. Pelo menos foi assim que eu entendi.
Foi isso, de certo modo, o que Tata Amaral (amiga e parceira criativa de Bernardet de longa data) esboçou em seu longa anterior, Hoje (2011), e que realiza plenamente em Trago comigo.
Aqui, o protagonista é Telmo (Carlos Alberto Riccelli), diretor de teatro e ex-guerrilheiro, que resolve montar uma peça reconstituindo o drama de um grupo revolucionário esfacelado pela repressão. Esse dispositivo narrativo aparentemente simples acaba por criar um fascinante jogo de espelhos, refrações e intermediações.
A preparação da peça com um punhado de jovens atores funciona, por um lado, como um processo terapêutico para o próprio Telmo, que revolve recordações dolorosas, revive um amor dilacerado, esclarece dúvidas, exorciza culpas. A certa altura, introduz-se um segundo sentido: usar a encenação como mecanismo de “desnudamento do tirano”, à maneira da peça dentro da peça em Hamlet, de Shakespeare, pois Telmo acredita que seu ex-camarada de militância Lopes (Emilio Di Biasi), hoje um secretário de cultura ou algo assim, tenha contas a prestar sobre sua atuação na luta.
Mas talvez o que haja de mais interessante e vivo no filme seja o embate entre as práticas e ideias da geração de Telmo com o universo dos jovens urbanos de hoje. Essa fricção produz faíscas belas e iluminadoras, que trazem à tona, ainda que brevemente, questões espinhosas para os velhos militantes, como um certo elitismo de seu movimento (ou antes, sua distância em relação à massa da população), além de um ethos um tanto ascético, próximo do martírio.
Camadas de memória
Os filmes de ficção que abordam de modo direto a luta armada contra a ditadura, com seu séquito de tragédias (tortura, clandestinidade, morte, exílio) costumam soar, pelo menos para mim, como adultos brincando de mocinho e bandido. Todos eles, de Cabra cega a Batismo de sangue, de O que é isso, companheiro? a Lamarca, passando pelos flashbacks de Ação entre amigos, parecem trazer o ranço da falsidade, do “faz de conta”. É um pouco o que acontece também com as reconstituições ficcionais pretensamente realistas do Holocausto. São realidades impossíveis de reconstituir, de tornar presentes, sem cair no sentimentalismo ou na mistificação.
Pois bem. Em Trago comigo esse “faz de conta” é engenhosamente transferido para a trupe que monta a peça. A montagem teatral, por sua vez, escapa da armadilha da falsidade justamente reforçando o “falso”, a estilização (dos figurinos, da cenografia, da iluminação). Em contraposição a essa recriação estética liberta do naturalismo, o filme insere depoimentos contundentes (mas desprovidos de sentimentalismo) de ex-militantes que sofreram tortura e viram parentes e companheiros morrerem.
A articulação dessas várias camadas de memória e de reconstrução do passado, revelando modos diversos de trânsito entre documento e ficção, é o trunfo maior desse filme maduro e íntegro como poucos. Do ponto de vista da dramaturgia e do equilíbrio do elenco, vale destacar o contraponto entre o grave e compenetrado Riccelli, sempre com os olhos a um triz das lágrimas, e o delicioso desafogo cômico trazido por Paula Pretta, excelente no papel de diretora-assistente.
Em tempo: antes de se transformar em longa-metragem de cinema, Trago comigo foi realizado como minissérie para a TV Cultura, em 2009. A competente montagem de Willem Dias faz praticamente desaparecer as marcas e suturas dessa origem.
Big Jato
Rever Big Jato quase um ano depois de sua consagração em Brasília, assentada a poeira das discussões sobre o controvertido comportamento do diretor Cláudio Assis, é descobrir novas belezas e atentar para detalhes não suficientemente realçados.
Muitos falaram (eu inclusive) sobre o notável tour de force de Matheus Nachtergaele nos papeis do pai e do tio do jovem protagonista (o ótimo Rafael Nicácio), homens muito diferentes entre si.
Mas faltou dizer que cada um dos irmãos também tem contradições internas fecundas, no caráter e no temperamento. O violento Chico, que ganha a vida com um caminhão limpa-fossas, é um sertanejo bêbado, reacionário e machista, mas tem lampejos geniais de compreensão do mundo, é apaixonado pelos Beatles, destila um humor iconoclasta. Seu irmão Nelson, o porra-louca maconheiro que tem um programa de rock na rádio local, vocifera contra seus acomodados e submissos conterrâneos, mas se ressente da passividade e da covardia que o impediram de partir para o mundo.
No cômico embate entre eles delineia-se um afeto subterrâneo, não dito, como se um não pudesse existir sem o outro, ou mais, como se eles formassem um único ser dividido em dois. Matheus Nachtergaele é um ator tão prodigioso que consegue dar vida e credibilidade a todo esse jogo de ambiguidades e deslizamentos, a ponto de esquecermos que ali não há Chico, nem Nelson, mas apenas Matheus.