No próximo dia 25 de outubro, o IMS lança o nono título de sua coleção de DVDs: Cerimônia Secreta (1968), do diretor norte-americano Joseph Losey. Para marcar o lançamento, o filme será exibido entre 25 e 27 de outubro, às 20h, no IMS do Rio de Janeiro, e também será realizada a Mostra Joseph Losey até 7 de novembro.
Cerimônia secreta é um dos filmes menos citados e reconhecidos na obra do atualmente também pouco lembrado Joseph Losey. Para ele, “o assunto do filme é a terrível necessidade que os seres humanos têm de outros seres humanos” (como registra Christien Ledieu em Joseph Losey, livro da coleção “Grandes cineastas”, Record, Rio de Janeiro, 1974) e a “dificuldade em satisfazer este desejo quando sua necessidade se manifesta em nosso mundo hostil”.
Losey dirigiu a primeira montagem teatral da peça de Brecht sobre A vida de Galileu em 1947 e dizia que seu cinema recebeu influências do teatro brechtiano, mencionando as em vários itens que culminam no último:
1º) A importância do gesto preciso.
2º) A economia de movimentos, tanto dos atores quanto da câmera; nada se mexendo sem um objetivo.
3º) Fluidez na composição.
4º) A justaposição dos contrastes graças à montagem como forma mais simples de obter o célebre “efeito de distanciamento”.
5º) A exaltação da realidade para compreendê-la.
Tudo isto para atingir:
6º) A ampliação da visão do olhar individual.
A busca de propiciar o olhar individual é coerente com outra declaração sua, em que comentou (para Michel Ciment, em Le livre de Losey, Stock, Paris, 1985) que “se existe um talento teatral ou cinematográfico, ele deve comportar um engajamento social; mas hoje em dia isso não é mais tão simples, pois não há mais respostas prontas, fáceis ou completas a serem dadas: quer se trate dos pais aos filhos, dos professores aos alunos ou dos teólogos aos iniciados. Pode-se apenas dar um estímulo. E creio que o melhor estímulo é uma criação artística completa, vale dizer, forma e emoção que conduzirão os que veem e entendem a uma reflexão mais aprofundada – eis porque as várias interpretações de um filme são perfeitamente adequadas se são boas, mesmo que sejam estranhas às intenções do autor”.
Posteriormente decepcionado e “profundamente envergonhado” com o stalinismo, não abandonou as críticas às diferenças sociais, tendo abordado este problema em vários dos seus filmes sem dogmatismo nem sectarismo, promovendo aproximações sutis da questão – sem deixar de lado a pesquisa formal exigente e a investigação de áreas obscuras do psiquismo dos personagens, embora sempre pontuando os determinantes sociais que também participaram na estruturação de suas personalidades.
Em uma entrevista a propósito de Cerimônia secreta (para o citado livro de Michel Ciment), concordava que Cenci (Mia Farrow) fazia parte de uma aristocracia decadente e acrescentava: “O conflito entre a classe média e as elites é bem mais complexo que o conflito entre a classe operária e a classe média. A classe operária não tem mais ilusões: sabe que jamais terá o lugar dos senhores e sabe que morre por fome. Mas a classe média tem o seu conforto e prosperidade medidos pelos padrões das elites”.
Em vários de seus filmes encontramos a situação de um personagem que, para sobreviver, acha que deve morar numa casa protegida e se colocar lá dentro para fugir à violência do mundo – até o dia em que um personagem de fora se introduz, ultrapassa as paredes e quebra com a suposta proteção intramuros. Esta alegoria se repetiu em O homem que veio de longe (Boom, 1968) e até na polêmica versão de O assassinato de Trotsky (The assassination of Trotsky, 1973). Em O criado (The servant, 1963), a morte psíquica e a decadência moral, tal como em Eva (1962).
Com a exceção óbvia do personagem Trotsky, os encastelados eram de uma elite alienada tanto social como psiquicamente, cujo exemplo mais intenso e mais típico é Cenci. Sobre ela, disse Losey: “Eu e Mia Farrow a concebemos como uma esquizofrênica histérica que parecesse normal em alguns momentos. Leonora (Elizabeth Taylor) não é certamente sadia nem normal por aceitar uma vida esquizofrênica em que deve adotar outra personalidade. Sendo assim, é uma história de esquemas que se repetem como parte de um ritual, já que o ritual é, em si, uma repetição”.
Enquanto repetição obsessiva de um ritual através do qual uma filha quer reencontrar a mãe morta e uma mãe pretende reencontrar a filha que se afogara, a folie à deux as protege – temporariamente – de se defrontarem com suas perdas e com uma falta ainda maior do que a perda de uma pessoa significativa emocionalmente: a falta de uma estrutura de personalidade própria. Uma se utiliza da outra como prótese, num espaço ambíguo entre o jogo de faz-de-conta e o faz-de-conta que não é um jogo.
O retorno de uma figura masculina como a do padrasto (Robert Mitchum) pode reorganizar as transferências psicóticas para uma configuração edípica em vez de simbiótica; mas ele é pervertido, tão ou mais excitado do que a enteada pela possibilidade do incesto. De qualquer forma, ele vai desfazer a simbiose entre Cenci e suas mães: tanto a substituta quanto a original, cuja morte ela parece aceitar ao ir visitar seu túmulo. Ao mesmo tempo, a dissolução da simbiose vai lançá-la no abismo em que sua vida já vinha mergulhando.
A ruptura promovida pela “mãe” Leonora, ao desfazer uma gravidez imaginária de Cenci, induz a jovem a trocar o jogo histérico de sedução pela busca do coito ncestuoso. Leonora falha em sua promessa de não perder uma filha pela segunda ez, condenando-se a ser irremediavelmente só. Como um dos ratos da fábula que ela menciona: ambos caíram em uma tina de leite, e o que se debateu perto do afogamento a ponto de transformar o leite em manteiga, para vir a caminhar sobre ela, sobreviveu sozinho – enquanto o outro ratinho que gritava por socorro se deixou afogar…
P.S.: A fotografia admirável de Garry Fisher – com quem Losey trabalhou em Casa de bonecas (A doll’s house, 1973), Acidente (Accident, 1967), Mr. Klein (1976) e O mensageiro (The go between, 1971) – utiliza a ambientação insólita de uma casa que de fato existia na Londres da época. O roteiro é de George Tabori (de A tortura do silêncio, de Hitchcock), baseado em um obscuro conto de origem argentina que lembra um misto de Bioy Casares e Cortázar. Cabe lembrar que Losey ficou naturalmente muito indignado com o que os produtores do filme fizeram ao exibi-lo na TV americana, enxertando cenas em que dois atores em papéis de um psiquiatra e de um advogado discutiam a história, como que “explicando” o comportamento dos personagens.
Notas escritas como introdução a um debate sobre Cerimônia secreta realizado em maio de 1998 na Sociedade Brasileira de Psicanálise, no Rio de Janeiro
* Luiz Fernando Gallego é crítico de cinema.