O prazer do contista

Literatura

19.03.14

No começo do ensaio “Do conto breve e seus arredores”, o escritor argentino Júlio Cortázar comenta um dos preceitos do “Decálogo para o perfeito contista” de Horácio Quiroga: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para se obter a vida no conto”. Seguindo esta ideia, Cortázar vai dizer que um dos indícios de que se encontrava diante de um grande conto é o de que a narrativa se desprendia do autor “como uma bolha de sabão do pito de gesso”.

Digamos que essa organicidade entre a coisa narrada e o narrador é uma marca do bom conto, da tensão que se condensa nas poucas páginas de uma narrativa breve. É o que encontramos em Uns contos, de Ettore Bottini, que acaba de ser publicado pela CosacNaify. E falar aqui em Cortázar não é algo extemporâneo ao universo de Bottini, que era um leitor de Cortázar, entre tantos outros autores de sua mais íntima admiração.

Ettore Bottini em 1987 e a capa de Uns contos

Infelizmente, o escritor destas poucas e intensas narrativas não suportou uma operação, o coração de ex-fumante fraquejou, e ele nos deixou no final do ano passado, aos 64 anos, quando o livro ainda estava no prelo. Não era conhecido publicamente como escritor – poucos sabiam de seu trabalho cuidadoso e meticuloso com as palavras escritas, apesar de seu nome constar em um punhado de livros publicados no Brasil, dos quais foi o responsável pelo projeto gráfico ou pela capa.

Era, em bom português, um grande capista. Trabalhou durante muitos anos para a antiga editora Brasiliense; depois esteve presente e deixou sua marca registrada nos projetos gráficos e nas capas da Companhia das Letras (algumas das quais podem ser vistas ao final do post), desde o início. Trabalhou para muitas outras editoras, e nos últimos anos, devido a uma certa escassez de encomendas de capas e numa reviravolta em sua vida, fez um exame para o Banco do Brasil, passou, e provavelmente vinha colecionando histórias da mesa onde atendia os clientes.

Ettore era uma espécie de artesão da capa, como o são alguns de seus colegas de geração e de ofício, e como um bom narrador não queria que o elemento gráfico atropelasse o próprio livro. Se vale o depoimento pessoal, trabalhamos juntos em alguns projetos, ele como capista e eu na condição de editor. E me lembro sempre deste cuidado, o de encontrar uma imagem que fosse significativa para aquele livro, e o de trabalhar os tipos e as cores com extremo cuidado, na busca do equilíbrio e da informação.

Reuníamo-nos no seu quarto, onde ficava sua escrivaninha, o computador, a cama de casal (dele e de sua mulher, Denise), e uma estante de madeira, com porta de vidro. Sempre me chamou a atenção aquela estante. Eram poucos livros, mas selecionados. Eram como se aquelas lombadas o conhecessem de muitos e muitos anos de vida, e aquela fosse uma biblioteca afetiva, com os livros que lia e relia, velhos romances de aventura, livros sobre cavalos e história de jóqueis, uma de suas paixões, vários volumes de conto, como a obra de Cortázar, ou de Borges. Nunca cheguei a abrir a porta de vidro, mas às vezes ele me mostrava algum livro. Nada de raridade de sebo. Eram livros que tinham uma ligação com sua própria vida.

Uns contos, de certa forma, é fruto dessa mínima biblioteca e da própria memória do escritor. Antes deste livro, ele havia publicado, em 2007, Mãe da rua, também pela Cosac. Era um livro de memória, no qual ele relembrava seus amigos de adolescência, numa rua da Vila Mariana, dessas em que a molecada se encontra na esquina e o tempo é gasto em brincadeiras de rua, e ainda aproveitava a deixa para sapecar lições de como fazer alguns brinquedos, como pipa, peão, carrinho de rolimã, e até os hoje politicamente incorretos, como um engenhoso revolverzinho de caixa de fósforos para atirar feijões.

Mas a grande faceta escondida (mas não muita, pois chegara a publicar um de seus textos na revista Novos Estudos, do CEBRAP, em 1994) era o do contista. E Uns contos nos revela um narrador consciente de seu ofício, equilibrado e econômico ao extremo, e que, de certa forma, segue a risca a teoria da “bolha de sabão”, tal a organicidade entre narrador e coisa narrada. E isso desde a primeira história, “Grama leve”, na qual ele põe em cena um narrador em primeira pessoa, o jóquei Luiz Sellaio, que conta a sua história familiar, de imigrantes italianos, para explicar a origem de seu próprio nome.

Assim como em outros contos, a ação nunca é grandiosa, memorável, no sentido de grandes feitos. Ela é sempre simples, mas tramada com calma e com intensidade lírica. É o que se vê em “Provisões do tempo”, com a história do comerciante Turco e seu amigo Walter, numa viagem de picape pelas estradas do interior, ou em “Hey Joe”, com o relato sobre o matador de aluguel Raulino Neto, e em tantos outros. Nada de trágico parece acontecer. Mas ele tira tal significação humana de uma pequena situação, de um acontecimento às vezes fugaz, que envolve completamente o leitor.

Em “Prólogo para um livro de contos”, ele explicita a sua poética. Cria um personagem contista que reflete sobre seu ofício: o trabalho de ficar alinhando palavras. A certa altura, numa espécie de discurso indireto livre, captamos o pensamento do contista-personagem: “Contos são ovos alquímicos. Alguns, cozidos e recozidos à exaustão, explodiam e sujavam as paredes. E outros, um vago cintilar ameaçava coagular-se na pedra filosofal. E talvez fosse isso, uma coleção das coisas que vira e dos momentos que vivera, sem outro nexo além do corpo que os acumulara. Talvez, apenas, o exercício da humilde e primeira atividade cerebral, a memória, a compor frouxa autobiografia. Iluminava, então, com luz favorável cada personagem que contivesse um reflexo seu. Demorou a descobrir que também os canalhas o continham.”

A precisão com que desenha, neste conto, a sua poética, marca toda a coletânea. Haveria ainda muitas outras observações a se fazer: o trabalho artesanal da linguagem, pois Ettore coloca o leitor não apenas no universo de suas personagens (um jóquei, um cavalariço, um matador, irmãos pescadores, marinheiros, os soldados que fazem guarda ao Cristo crucificado etc.), mas na própria linguagem específica que cerca estes ofícios, sempre com precisão e muito gosto; e nota-se ainda o deslocamento das personagens, pois quase todas vieram de outros lugares, sempre migrantes, de passagem, ou vivendo em outras terras.

Talvez no bojo destas narrativas esteja um punhado de memória pessoal, como também um outro tanto de lembranças de suas leituras afetivas. Mas salta a vista o prazer da palavra, do trabalho de escrever uma história, ou, como reflete seu alter-ego de “Prólogo para um livro de contos”, ele “compreendeu, enfim, que os contos não necessitavam de outra justificativa além de sua própria existência ou do prazer que sentia ao escrevê-los”. Certamente Ettore Bottini tinha esse prazer, e soube muito bem dividi-lo com seu leitor.

* Heitor Ferraz Mello é jornalista e autor do livro de poemas Um a menos (7 Letras, 2009)

 

 

Algumas das capas de Bottini

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