O noir e o lado obscuro da América

No cinema

14.11.14

Para quem gosta de cinema, não existe nada mais fascinante que o filme noir. E uma boa introdução ao gênero (ou revisão) pode ser a caixa de DVDs lançada pela Versátil, com seis obras marcantes dirigidas por cineastas como Samuel Fuller, Jacques Tourneur, Robert Aldrich e Otto Preminger. Vale por um curso intensivo.

Não vai ser possível discorrer sobre todas elas aqui, mas apenas destacar alguns de seus pontos altos e esboçar de que modo eles se relacionam com, digamos, o estatuto noir.

Pois o noir não é propriamente um gênero, é quase uma visão de mundo que atravessa vários gêneros – policial, melodrama, suspense, filme de gângster – e que se caracteriza por uma estética e uma moral muito marcantes.

Alguns elementos estilísticos do noir tornaram-se clichês facilmente reconhecíveis: a predominância das sombras, o uso dramático do claro-escuro (herança da maestria expressionista alemã), os ambientes enfumaçados, a frequência dos plongéescontre-plongées e eventualmente dos enquadramentos oblíquos. Na construção dramática, os anti-heróis moralmente ambíguos, as louras fatais. No figurino e na cenografia, acessórios como o chapéu, o cigarro, a cabine telefônica, os ventiladores de teto etc.

Avesso da América

Mas, para além desses traços de superfície, o que caracteriza o noir é uma visão sombria da sociedade e do homem. Suas intrincadas narrativas costumam ser um mergulho nas entranhas sórdidas da vida social e da alma humana. Num dos extras da caixa da Versátil – um documentário sobre O cúmplice das sombras, de Joseph Losey – alguém diz que “o noir é um estudo dos sete pecados capitais”. É verdade. Mas é também uma radiografia do lado obscuro da sociedade norte-americana do pós-guerra, o avesso do sorridente e edificante american way of life.

Cena de Fuga do passado (1947).

Um filme como Fuga do passado (Jacques Tourneur, 1947), um dos destaques do pacote, tem grande parte de sua ambientação em cenas exteriores diurnas. Do mesmo modo, o clímax do eletrizante O cúmplice das sombras (Joseph Losey, 1951) se passa na paisagem ensolarada do deserto de Mojave. No entanto, em ambos os casos, os personagens – e o espectador – estão imersos nas trevas.

Um dos muitos ângulos possíveis de leitura das obras da caixa é o cotejamento entre os diferentes estilos dos diretores, da elegância de Jacques Tourneur à objetividade quase brutal de Samuel Fuller, passando pela sutileza perversa de Joseph Losey e pela intensidade delirante de Robert Aldrich.

Paranoia anticomunista

Outro caminho de abordagem é observar os filmes em sua relação com o contexto de Guerra Fria e “caça às bruxas” em que foram realizados. Dois deles tematizam de modo mais ou menos direto a paranoia anticomunista da época. Em A morte num beijo (1955), de Robert Aldrich (baseado em livro de Mickey Spillane), o labirinto de traições e assassinatos tem em seu centro um experimento radiativo que pode ensejar a destruição do planeta. Seu final apocalíptico é um dos mais espetaculares de todo o cinema. Mas a sequência de abertura não fica atrás, como se pode ver aqui:

Já em Anjo do mal (Samuel Fuller, 1953), dois pobres-diabos, um batedor de carteiras e uma prostituta, são envolvidos numa trama de espionagem científica e segredos atômicos. Numa entrevista incluída nos extras, Fuller fala das negociações com o então chefão do FBI, J. Edgar Hoover, para a liberação de certas cenas do filme.

A relação de O cúmplice das sombras com a sanha anticomunista é de outra ordem. Seu diretor, Joseph Losey, e seu roteirista, Dalton Trumbo, ambos ligados ao Partido Comunista, negaram-se a delatar companheiros à comissão de atividades antiamericanas do senado e entraram na lista negra de Hollywood. O proscrito Trumbo, aliás, assina o roteiro com o nome de um amigo, Hugo Butler.

É, de resto, um filme cheio de subtextos sobre a corrupção da sociedade e do indivíduo pelas ilusões da sociedade de consumo. Quase um libelo anticapitalista sob a forma de um empolgante drama de adultério e assassinato, em pleno auge da guerra aos “vermelhos”.

Passos na noite (1950), em que Otto Preminger retoma o casal de astros do clássicoLaura, Dana Andrews e Gene Tierney, o protagonista é um policial na corda bamba entre a lei e o crime, e Entre dois fogos (Anthony Mann, 1948) é uma paradigmática história de vingança entre gângsteres, fotografada magnificamente pelo célebre John Alton. Duas pequenas obras-primas que completam um pacote sem pontos fracos.

A visão de Scorsese

Neste trecho (infelizmente sem legendas) de seu monumental documentário Uma viagem pessoal pelo cinema americano, Martin Scorsese fala sobre “o diretor como contrabandista” e em especial sobre o filme noir, ilustrando sua explanação com muitos trechos de filmes. Vale a pena ver:

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