Já tinha visto trabalhos de Raphael Domingues e Emygdio de Barros em outras oportunidades, mas foi com a abrangente exposição Raphael e Emygdio: Dois modernos no Engenho de Dentro, no Instituto Moreira Salles de São Paulo, que conheci de fato a dimensão da obra desses dois artistas. Sabia da inventividade do traço de Raphael, de sua capacidade em desdobrar uma silhueta simples em significados figurativos abertos e livres. Tal como sabia o colorista sofisticado que Emygdio foi.
Ambos se tornaram conhecidos como pacientes do Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação do Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, coordenado pela doutora Nise da Silveira. Por isso, no mais das vezes eram apresentados em exposições que relacionavam a arte ao sofrimento mental.
Não sou capaz de dizer o que os trabalhos expostos no Instituto Moreira Salles podem nos ensinar sobre os sintomas da loucura e suas terapias. Acredito que muita coisa. No entanto, na mostra a obra deles é apresentada independente do diagnóstico médico, o que é muito bom. Conseguimos entender que o trabalho não é um sintoma nem uma excentricidade da doença; é o esforço para criar uma forma de comunicação com o mundo. Esses artistas desenvolveram um vocabulário visual, certos interesses estéticos e uma linguagem peculiar. Linguagem, aliás, que nos permite colocá-los entre os grandes criadores brasileiros.
Olhando os pequenos trabalhos de Emygdio, acredito que poucos pintores brasileiros conseguiriam usar bem a variedade cromática do artista nos seus trabalhos dos anos 1970 num espaço tão exíguo. As imagens se estabelecem por contrastes nítidos, por relações entre matizes dispersos que se aproximam e criam uma região de cor e pelo modelado da tinta que nos faz ver algo em meio ao colorido solto. A variedade de sentidos que o artista consegue na relação entre áreas de concentração e dispersão das pinceladas é enorme, como lembra Rodrigo Naves no catálogo da exposição.
No entanto, em várias pinturas, personagens mais bem contornados se põem a contemplar a natureza. Ela aparece como água, mata, vegetação na praça e flor no jardim. Em cada momento provavelmente guarda um sentido específico, por isso, cada pintura deveria ser analisada com mais vagar. São sempre os momentos em que esses personagens parecem conseguir aquietar o mundo e enxergar alguma beleza.
Olhamos para algo que se forma com mais atenção do que para as outras partes da pintura. Assim como aqueles personagens miram o mar e dão as costas para a praia; olham para a flor e dão as costas para a vegetação desordenada da praça.
Prestamos atenção em figuras e formas que surgem entre as bordas da superfície menos pintada, através da janela, atrás das árvores. Em algumas pinturas, a oscilação do azul parece se voltar para as memórias da vida de convés de Emygdio; em um pequeno óleo sobre papel, nos faz olhar para uma tela vazia no canto esquerdo. De qualquer forma, sempre cria áreas de concentração, em uma experiência que sugere a dispersão.
Rodrigo Naves, ao comparar o colorido de Emygdio com o dos expressionistas alemães, diz que o brasileiro “precisou pagar o preço de satisfazer-se apenas com o encantamento de regiões limitadas da realidade”. Se não me engano, embora a frase seja muito mais abrangente, pode falar de uma procura por definição onde tudo parece disperso.
O trabalho de Raphael parece um desdobrar infindável de signos do traço. No texto do catálogo, Heloisa Espada conta que, ao ingressar na terapia, Raphael só desenhava tracinhos a se cruzarem, formando signos geométricos. O artista só começou a desenhar figuras a pedido de um funcionário da casa. É interessante como Raphael se vale de um vocabulário de signos mais ou menos abstratos para criar retratos, naturezas-mortas e imagens com gênero menos identificável.
Sua linha contínua traçava formas simples que sugeriam rostos, flores e vasos. A princípio são sugestões vagas. Tornam-se mais precisas quando o artista pendura a essas silhuetas elementos decorativos, igualmente límpidos, que nos fazem lembrar olhos, pálpebras e lábios. Mas são elementos soltos na composição. Parecem brincos. Não estão vinculados ao corpo por uma pele, são linhas próximas umas das outras.
Assim como o traçado é claro, limpo, certeiro e sintético, ele também parece instável. Notamos isso ao perceber a quantidade de significados que os símbolos dispostos em um retrato de Almir Mavignier e Abraham Palatnik podem ter. Em outro retrato, de sua mãe, um dos trabalhos mais bonitos da exposição, a imagem parece ainda mais frágil, dando a impressão de ser uma colagem arbitrária daqueles signos. Mas temos uma imagem delicada e bem humorada.
É como se, arranjando as coisas sobre um lugar, Raphael encontrasse certa ordem. Ela não dura muito tempo, mas é sugerida. O traço depois foge pela margem direita do papel, como foge num belo retrato de Abraham Palatnik. Talvez por isso seus melhores trabalhos sejam naturezas-mortas, o gênero que dispõe objetos inanimados com certa ordem sobre uma superfície qualquer.
Curioso como em uma exposição conseguimos encontrar afinidades entre artistas tão dessemelhante quanto Emygdio e Raphael. Acredito que as imagens de um pouco tenham a ver com as do outro, mas a representação não aparece como algo estável em nenhum dos dois artistas. Ambos, no entanto, procuram uma imagem regular, concentrada e com certo lampejo de encantamento.
* Tiago Mesquita é crítico e professor de história da arte.