O destino de Brasília

Arquitetura

07.12.12

Palácio do Congresso, 1960 (Marcel Gautherot/IMS)

O texto a seguir foi retirado do livro Brasília, de Marcel Gautherot.

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O destino de Brasília

Constrangia-nos apenas verificar que para os operários seria impraticável manter as condições de vida que o Plano Piloto fixara, situando-os, como seria justo, dentro das áreas de habitação coletiva, e permitindo que ali seus filhos crescessem fraternalmente com as demais crianças de Brasília, sem complexos, aptos às reivindicações que o tempo lhes irá proporcionar.
Víamos, com pesar, que as condições sociais vigentes colidiam nesse ponto com o espírito do Plano Piloto, criando problemas impossíveis de resolver na prancheta, mesmo apelando ? como alguns mais ingênuos sugerem ? para uma arquitetura social que a nada conduz sem uma base socialista. E compreendíamos que a única solução que nos restava era continuar apoiando os movimentos progressistas que visam um mundo melhor e mais feliz.

Oscar Niemeyer, Módulo, n. 18, 1960

Alvorada

Brasília foi inaugurada em um momento particularmente suscetível no processo de modernização política e cultural do Brasil, em uma década na qual foram aprovadas leis no intuito de facilitar a desapropriação de terras como um instrumento de planejamento para fazer frente à migração em larga escala do campo para as cidades.

À época, desenvolvimentos significativos ocorriam na arquitetura e nas artes; o mais importante dentre eles, sem dúvida, a emergência de uma linguagem especi-ficamente brasileira nessas áreas, com origens em fins da década de 1930, na obra pioneira de figuras como Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, Candido Portinari e Roberto Burle Marx. Tomando a obra desses artistas como seu ponto de partida, nos primeiros anos da década de 1950, Vilanova Artigas dava início à assim chamada escola paulista de arquitetura, envolvendo profissionais como Paulo Mendes da Rocha, Rino Levi e Lina Bo Bardi. Pela mesma época, o poeta Ferreira Gullar publicava o seu Manifesto neoconcreto (1959), no qual procurava aprofundar um já fértil intercâmbio entre artistas concretistas europeus e latino-americanos. Movimento este que já havia levado ao surgimento de proeminentes artistas como Mary Vieira, Lygia Clark e o onipresente Athos Bulcão. Tudo isso coincidia com um movimento crucialmente progressista em uma escala global, quando a estratégia neocolonial da Pax Americana se tornava mais moderada e quando os confrontos da Guerra Fria se prestavam ? não importa quão inadvertidamente ? a manter um equilíbrio entre o Estado do bem-estar social neocapitalista do pós-guerra e o assim denominado bloco comunista; um momento, contudo, em que ajustes de maior envergadura ainda estavam por se iniciar, em que as florestas tropicais ainda estavam relativamente intactas e a transformação do clima ainda não havia alcançado o seu ponto crítico. Que Brasília tenha sido realizada na crista de uma onda histórica tão promissora é comoventemente evocado pelas fotografias elegíacas do francês Marcel Gautherot, tiradas entre 1956 e 1960, quando o núcleo inicial da nova capital estava em construção.

Nascido em 1910, de origem operária, Gautherot estudou arquitetura e design de interiores na École des Arts Décoratifs, Paris, antes de se sentir incentivado em 1936, com a criação do Museu do Homem, a documentar a vida diária daquelas pes-soas comuns que, por todo o mundo, ainda estavam integradas a uma economia culturalmente enraizada na era pré-industrial.

Foi esse impulso etnográfico que primeiro o trouxe ao Brasil, em 1939, para documentar a cultura popular do delta amazônico. Seria muito no mesmo espírito que, duas décadas mais tarde, Gautherot abordaria a sua documentação da Brasília en chantier. As suas imagens da capital em construção no hinterland, em meio a um planalto parcamente povoado, ressurgem hoje como os stills esquecidos de um filme do realismo socialista, com a estrutura de aço e os 28 andares da torre dupla do Congresso elevando-se como uma miragem por entre os redemoinhos de poeira do cerrado aplainado.

Como socialista convicto que havia amadurecido à época da Frente Popular francesa, pouco antes do trágico desfecho da Guerra Civil espanhola, Gautherot parece ter encarado a realização de Brasília como uma oportunidade seminal na história do que era, então, o primeiro Estado multirracial moderno. Próximo do espírito de fotógrafos socialmente engajados, como Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e Tina Modotti, ele parece ter visto aquele ensejo como um ponto de convergência entre as visões esclarecidas de uma elite brasileira e a energia heroica de trabalhadores nômades das classes mais destituídas, os denominados candangos, que vieram para Brasília aos milhares para erigir, em meros três anos, o complexo governamental e a espla-nada ministerial, trabalhando 24 horas ininterruptas, dia sim, dia não. Apesar das fatigantes, para não dizer perigosas, condições de trabalho, esses “condenados da terra” ? para nos valermos do título do conhecido livro de Frantz Fanon ? parecem ter uma noção de que estavam participando de um evento histórico de transformação de importância mundial. Tem-se a sensação de que, apesar das suas vidas árduas, eles teriam endossado os versos evocativos do poeta Vinicius de Moraes em sua “Sinfonia da alvorada”, escrita em parceria com o músico Tom Jobim para a inauguração da capital em 1960: “Sim, ele [Niemeyer] plantaria?no deserto uma cidade muito branca e muito pura […] uma cidade de homens felizes”. Ao mesmo tempo, é inquietante o fato de que as imagens de Gautherot da vida difícil desses trabalha-dores, acantoa-dos em seus alojamentos e improvisados abrigos temporários, feitos de restos de construção, não tenham sido publicadas durante a primeira fase da realização de Brasília, ao contrário do registro supostamente mais objetivo feito pelo fotógrafo oficial Mário Fontenelle.

Seja como for, é tocante descobrir que a primeira residência presidencial, erigida em meio a um matagal, era tão rudimentar quanto os barracões providos pela Novacap para a acomodação da mão de obra operária. Estou me referindo ao “palácio” Catetinho, com seus dois andares e cobertura de uma água, construído inteiramente de madeira em menos de dez dias em 1956, segundo risco de Oscar Niemeyer. Como um equivalente necessariamente provisório da tradicional residência presidencial no Rio de Janeiro, esse diminuto palácio dá testemunho, tanto quanto qualquer outra realização conjunta, da duradoura e estreita amizade entre Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek. É difícil imaginar algo mais íntimo do que aquela suíte presidencial com seus seis dormitórios, aos quais se tem acesso diretamente por uma varanda aberta para a mata. A presença de um barzinho despretensioso nesse belvedere nos leva a imaginar a entourage presidencial chegando num Dakota, ao cair da noite, ao campo de pouso próximo.

Nenhuma das cidades-capital contem-porâneas fundadas após a Segunda Guerra Mundial pode se igualar a Brasília, seja pelo caráter monumental, geomântico, da sua concepção, quanto à subsequente rapidez da sua realização siste-mática. Patentemente influenciado por Le Corbusier, mas transcendendo a sua visão da cidade radiosa, o Plano Piloto de Lucio Costa tomou a remota herança cultural do mundo antigo como ponto de partida ? da grandiosidade axial do Egito aos paradigmas cosmogônicos fundado-res do Império Romano. Daí o cardo e o decumanus que informaram o primeiro croqui de Costa, a tão conhecida cruz que constituiria o esqueleto do seu plano, assumindo a silhueta de um gigantesco pássaro primevo pousando no local como o signo de um destino cósmico. Enquanto a fronte triangular desse pássaro mítico ? o nexo simbólico da praça dos Três Poderes ? nunca foi realizada na sua forma triangular original, as asas residenciais Norte e Sul dessa estrutura foram plenamente desenvolvidas, em um primeiro momento pelos prédios de apartamentos das superquadras ocupando a asa Sul e, na sequência, por aqueles mais densos e variados que vieram a preencher a asa Norte.

Superquadra

O conceito de unidade de vizinhança, conforme encontramos delineado no estudo definitivo de Clarence Perry, The Neighborhood Unit, de 1929, provavelmente nunca foi mais habilmente articulado e judiciosamente aplicado do que nas superquadras de Brasília, concebidas por Costa como um exemplo de assentamento habitacional e automotivo essencial para o seu plano de 1957. Pode-se entender o seu padrão de unidade de vizinhança ? composto pelo agrupamento de quatro superquadras, cada uma medindo 300x300 metros, e constituída por prédios habitacionais com térreo e, em geral, seis andares de altura ? como uma variação fundamental, não somente da visão urbana mais abrangente de Le Corbusier de 1934, como também da separação em pequena escala das circulações de pedestres e de veículos que caracteriza o empirismo de Radburn, Nova Jersey, o modelo canônico de unidade de vizinhança praticamente da mesma data. A genialidade dessa síntese tipológica deriva, com certeza, tanto da sua densidade relativamente baixa como da mistura de carros e pedestres entrando e saindo livremente dos limites de cada superquadra. Inspirado pelo slogan futurístico de Le Corbusier, para quem “uma cidade feita para a velocidade é uma cidade feita para o sucesso”, Costa concebeu essas superquadras como enclaves verdes alimentados pelo movimento controlado de automóveis, circulando quase sempre em declive.  O perímetro normativo de cada superquadra é definido não por edifícios, mas por um cinturão de árvores. As quadras são alocadas em pares, por assim dizer, e flanqueadas por faixas alternadas de comércio e de serviços comunitários; essas faixas são igualmente acessíveis a pé das quadras adjacentes. Uma escola primária foi prevista para cada conjunto de quatro superquadras, enquanto cada uma delas deveria receber um jardim de infância. Costa manteve-se aberto para variações desse padrão de vizinhança em quatro quadras quanto ao uso dado às faixas de serviços comunitários. Típico disso é o amplo interstício entre as superquadras Sul 106 e 107, acomodando campos de esporte e um cinema de dimensões respeitáveis, enquanto em outros encontramos escolas primárias, igrejas, clubes e pequenos conjuntos comerciais.

De igual importância em termos de variação de uma superquadra para outra é a disposição diferente das suas lâminas residenciais, associada a mais permutações em termos de arquitetura, tipos de apartamentos e modos de acesso a cada prédio. Assim, enquanto a superquadra Sul 308 ? localmente conhecida por SQS 308 ? conta com nove prédios dispostos ortogonalmente entre si em uma formação vagamente em espiral, em meio ao paisagismo de Roberto Burle Marx, a superquadra adjacente, a SQS 108, compreende 11 prédios, seis deles implantados aos pares, nos confins do cinturão verde que delimita a quadra. As SQS 107 e 108, ambas projetadas por Niemeyer, empregam um tipo similar de lâmina, cujo acesso vertical é feito por uma torre destacada de escadas e elevadores, servindo estreitos corredores externos, os quais são protegidos da exposição ao sol por delgados paramentos feitos de elementos vazados de concreto pré-fabricados. Tal recurso parece ter sido tomado de empréstimo diretamente dos prédios de apartamentos do magistral parque Guinle (1948), de Lucio Costa, no Rio de Janeiro, ainda que o caráter intrínseco dificilmente tenha alcançado o mesmo nível de resolução.

O sucesso da superquadra certamente deriva, em parte, do fato de que todos os blocos residenciais são elevados sobre pilotis, o que ao mesmo tempo articula ritmicamente o espaço e permite uma permea-bilidade física e visual sob os prédios por toda a extensão dos 300 metros quadrados. Essa é uma característica dessa forma-tipo na qual ? como no Pavilhão Suíço de Le Corbusier, de 1932 ? todas as lâminas são construídas em plataformas sobre as quais os pilotis respondem pela sua sustentação. Alguns desses pódios servem, simultaneamente, de laje de cobertura para garagens em subsolo; mais ainda, eles invariavelmente servem como generosos portais de acesso ao prédio. Hoje, em alguns exemplos, tais plataformas foram revestidas em granito polido, dando uma aura ao conjunto que é inescapavelmente burguesa. Contudo, em última análise, a tranquilidade e a identidade do modelo emana extensivamente da limitação de alturas, que se estendem acima do piloti por não mais do que seis andares. Difícil não especular sobre como Costa chegou a esse critério. Será tão somente coincidência que os arquitetos britânicos Alison e Peter Smithson tenham chegado a uma conclusão semelhante ao projetar seu conjunto residencial Golden Lane em 1952, qual seja, que “acima do sexto andar perde-se o contato com o chão”? Uma das nuances mais dignas de nota no padrão adotado
em Brasília é a redução da altura das edificações na sequência de superquadras localizada na extremidade leste das asas, onde os blocos habitacionais têm invariavelmente dois ou três andares de altura, em vez de seis, e os enclaves verdes têm planta retangular, em vez de quadrada. Tal sequên-cia não estava prevista no plano original e foi acrescentada, com outra sequência de casas econômicas na extremidade oeste das asas, de modo a contemplar os níveis de renda dos operários que construíram a cidade. Uma outra modificação foi um aumento no número de andares, de um para três, nos edifícios das faixas comerciais da asa Norte, de modo a prover, além das conveniências cotidianas, unidades residenciais mais baratas.

Essa última provisão mostrou-se algo inadequada, como é sugerido pelo desenvolvimento assimétrico de Brasília ao longo de meio século, levando a um padrão distorcido de ocupação do solo em relação à simetria do plano original. Parte desse crescimento urbano deslocado se deve ao fato de que a asa Sul foi desenvolvida de um modo mais consistente do que aquele aplicado na ocupação da asa Norte. Esse viés em direção ao sul, seguindo o ímpeto da rodovia ligando Brasília e o Rio de Janeiro, efetivamente levou ao surgimento de cidades-satélites, que hoje, com efeito, acomodam a maior parte da população, abrigando cerca de 90% do total de quase 3 milhões de pessoas morando e trabalhando na região. A esse respeito, é significativo que o único sistema de transporte público sobre trilhos operando até hoje em Brasília seja a linha de metrô ligando a estação rodoviária, no centro do Eixo Monumental, à cadeia de cidades-satélites que vão em direção ao sul: Guará, Águas Claras, Taguatinga, Ceilândia e Samambaia.  A presença dessa ligação por metrô tende a enfatizar a relativa escassez de transporte público na cidade como um todo, apesar da proliferação de linhas de ônibus intraurbanas. Dado o categórico racionalismo do eixo rodoviário, é de se perguntar por que não há faixas exclusivas para ônibus, como aquelas encontradas em Curitiba. Nota-se também que, até o momento, parece não haver planos para a construção de conexões por trens de alta velocidade entre Brasília e algumas das capitais estaduais mais próximas, como Goiânia e Belo Horizonte.

Axis mundi

É evidente que sem os incisivos eixos do Plano Piloto de Costa, Brasília simplesmente não existiria como capital moderna. Seria apenas mais uma megalópole motoutópica do modernismo tardio, expandindo-se continuamente em meio ao nada. Entre outras coisas, Lucio Costa foi presciente o bastante para conceber a sua infraestrutura viária como um sistema de estradas-parque em diferentes níveis, seguindo o exemplo ? porém totalmente o transcendendo ? dos famosos parkways construídos por Robert Moses no entorno de Nova York, durante a década de 1930. Independentemente de qual se considere ? o eixo norte-sul de superquadras ou a coluna dorsal monumental leste-oeste, que tem foco no Congresso e na Esplanada dos Ministérios ?, não restam dúvidas de que Brasília permanece, até hoje, uma das cidades mais eficientes dentre aquelas pensadas como greenways automotivos construídas por toda parte no mundo. Essa ampla capacidade parcialmente explica o caráter estranhamente vazio dessa estrada-parque monumental de quase um quilômetro de largura, que se entende por mais de 12 quilômetros de comprimento e se espraia para além de seu percurso por sucessivos estratos de prédios de escritórios de altura mediana, conectados aos prédios ministeriais por túneis e passarelas de ambos os lados da esplanada.

Tais anexos burocráticos exemplificam aquela nêmesis do urbanismo moderno, qual seja, que “o espaço de manifestação pública”, no sentido tradicional da expressão, tende hoje a ocorrer principalmente no interior da forma construída e não no espaço público ostensivo da própria cidade. Mais ainda, hoje, dada a nossa crescente ânsia paranoica por segurança, isso lamentavelmente é o caso até da plataforma elevada que sustenta a cuia da Câmara dos Deputados e o domo do Senado. Assim, apesar de seu ostensivo caráter público, essa ágora minimalista e metafísica em pleno coração da cidade não está mais acessível ao público. Talvez em nenhum lugar a aura dessa res publica, tão evocadora de De Chirico, tenha sido mais bem representada que nas fotografias de Gautherot, tiradas por volta de 1960, nas quais uma variedade de pessoas é retratada como personagens estáticas de um filme de Antonioni.

Dificilmente poderia haver maior contraste entre o prédio do Congresso e o do Ministério das Relações Exteriores, o chamado palácio do Itamaraty, localizado em um dos lados do eixo principal. Ele é, de fato, o espaço público mais representativo no todo do complexo cívico, em muito superando ? em termos de simbolizar o prestígio da nação ? a promenade architecturale tortuosa e descuidadamente equipada que pressagia as duas câmaras do parlamento. No Itamaraty, tudo deriva da sintaxe minimalista da imaginação teatral de Niemeyer. De imediato, o andar térreo já se afirma como uma obra de arte total, uma vez que o seu vão livre de 30 metros entre uma parede e outra tem por foco três obras de arte feitas sob medida ? a escultura em alumínio de Mary Vieira,
o jardim de Burle Marx, a treliça de Athos Bulcão ?, para não mencionar a escada em espiral de Niemeyer, com seus degraus de concreto em balanço, a qual salta como uma forma livre para o mezanino acima. Este outro andar é realçado por mais uma escada, igualmente teatral, pela qual se tem acesso a uma das mais espetaculares vistas do eixo central. Nele, como na maioria das melhores criações de Niemeyer, o tema é enfrentado valendo-se de obras de arte monumentais da mais alta qualidade, como os dois avantajados quadros de Portinari ou a imensa tapeçaria de Roberto Burle Marx, que cobre toda uma parede. Aqui, um jardim tropical, o mobiliário antigo e uma série de vinhetas históricas confrontam o visitante com os traços da trajetória histórica do Brasil.

A exaurida maneira carioca atual de Niemeyer ? ou seja, a sua versão da Nova Monumentalidade (ver “Nine Points on Monumentality”, de Sigfried Giedion, 1943) ? origina-se na sua preocupação com a imagem de um palazzo não tectônico levitando acima do solo. Encontramos tal imagem reiteradamente do palácio da Alvorada em diante, apesar da forma mais substancial em arcadas do palácio Itamaraty, mas cuja base também pode ser vista como igualmente não tectônica, já que suas fundações estão imersas em um espelho d’água. Talvez haja uma correspondência aqui, não importa quão inconsciente ela possa ser, entre o aparente vazio desses gestos formais e o caráter relativamente pouco desenvolvido das instituições que eles representam.

Para além da cabeceira do eixo monumental, o espírito do sertão volta a se afirmar na vastidão relativamente difusa que se desdobra por todos os lados da praça dos Três Poderes até o panorâmico lago. Tem-se a impressão de que, apesar de Costa ter acatado o conselho de sir William Holford de trazer a proa do eixo para mais perto do lago, nunca foi possível aproximá-la o suficiente. A consequência topográfica é tal que se tem a sensação de que não haveria nada para além do eixo não fosse pelo palácio da Alvorada ? o qual, por sua vez, relacio-na-se de modo um tanto hesitante com o lago ?, com a proliferação algo aleatória das embaixa-das e o mal-definido plano do campus da Universidade de Brasília, que parece ter sido inadvertidamente bloqueado pela barreira efetiva do longo e introspectivo edifício-galeria de Niemeyer, com seus quase 800 metros de comprimento; um golpe brilhante e antecipatório, que, entretanto, impediu até agora a constituição de um campus mais intersticial e sem restrições. Por sua vez, as embaixadas, que, como era de se esperar, variam muitíssimo em termos de sua presença representativa e qualidade arquitetônica, são mal-relacionadas entre si e parece haver pouca possibilidade de vir a surgir um bairro diplomático urbano. O sempre florescente cerrado está por toda parte nessa península e aqui, como em outros locais, Brasília se ressente de um excesso de espaço entre um edifício e o próximo, de tal modo que ? apesar da imagem monumental promissora de uma nova civilização ?, até agora, nela ainda não se materializou um espaço público genérico, caracterizado por uma verdadeira escala humana e um centro institucional correspondentemente rico. Pode-se dizer que, não obstante todo o seu status heroico como uma capital nacional, Brasília permanece o projeto moderno inacabado par excellence, suspensa entre a aparentemente não planejada, e pós-moderna, economia do laissez-faire de suas cidades-satélites e a visão modernista e planejada, contudo ainda distante de ter sido consumada, de um modo de vida inteiramente novo.

Tradução de Sylvia Ficher

Veja também:

Texto de Ana Luiza Nobre sobre a carreira do arquiteto

Debate sobre a obra de Oscar Niemeyer realizado pelos críticos Guilherme Wisnik e Pedro Fiori Arantes para a seção Desentendimento, da revista serrote

Ensaio de Adrián Gorelik intitulado “Sobre a impossibilidade de (pensar) Brasília”

Fotos de Marcel Gautherot das obras de Niemeyer

Cidade-bandeira, texto de Heloisa Espada sobre as diferentes visões acerca de Brasília

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